É noite lá fora, mas aqui dentro é tudo tão incerto. Os dias são outros, eu sei — estou presa aos dias de ontem e sua solidão de escritas noturnas. Tenho febre. Meu corpo queima. Músculos e nervos também. Escrevo esse punhado de linhas apenas para dizer que o inverno se apoderou de minha matéria. Mas o inverno a qual me refiro não é o dos homens e seus calendários insanos. O que se estabeleceu em minha amalgama é um hibernar de ilusões…
No mundo em que vivo é assim mesmo.
Permita-me confessar — faz tempo que eu tenho um mundo para chamar de meu. Foi necessário ou seria impossível sobreviver. Os mundos oferecidos a mim não cabiam o meu existir. Era o mundo dos outros… dos meus pais, dos meus tios, dos amigos e dos inimigos. O mundo capitalista-político-escolar… pré-concebidos a partir de outros que não eu. Tudo coisa alheia… nunca para mim.
Eu preciso de climas adequados e estações bem definidas. Calçadas de andar. Casas com muros baixos e portões barulhentos. Carrilhão na parede desbotada a badalar as horas de ontem. Hortas com verduras frescas.
Portas e janelas envelhecendo, sentindo o passar dos dias e guardando lembranças várias. O senhor deixando o leite e os pães na caixa do relógio. Um canteiro de rosas vermelhas. Uma mesa com papéis de amarelecidos tons, envelopes vermelhos e uma luminária se fazendo de sol para certas palavras. Um pé de laranja no quintal dos fundos. E um pequeno quarto com a porta emperrada e uma janela feita de ripas. Praças com bancos quebrados. Degraus em pares. Livros de poesias e um ritual de espera sendo comprido nos fins de tarde. De silêncio e do barulho da chuva. E a certeza de que o tempo passa porque eu necessito envelhecer para poder colecionar pretéritos dentro da memória da qual sou feita e me ajudam a escapar do mundo dos outros…
Foi por isso que eu fui obrigada a inventar-criar um mundo. Era a única maneira de eu ser quem sou.
O mundo que existe lá fora é estranho. Tem muitos preceitos equivocados. Conceitos alienados. Olhares inquisidores. Todos se parecem e andam em fila. Nada sabem de si mesmos. Mas gostam de apontar o dedo na direção do outro, que não tem o direito de ser diferente.
E eu não sei ser igual… eu gosto de nada ser. Ser tudo… e coisa nenhuma. Uma tempestade a ser formar de maneira repentina. Um vento forte do vento nas folhas. Uma trovoada barulhenta a ralhar com os humanos. Uma revoada de gaivotas… bem alto, por cima dos telhados vermelhos.
Eu gosto de ir na contramão e de ser sozinha. Mas eu gosto imenso de dar as mãos e de olhar nos olhos que se encontram com os meus…
Texto publicado no Coletivo — Nem sempre a lápis
Clube do livro Scenarium 8 Ano 2021
Escreveram-se os autores:
Lunna Guedes, Mariana Gouveia,
Manoel Gonçalves (Manogon) e Obdulio Nuñes Ortega