* Duas vezes me findei antes do fim

* Emily Dickinson — tradução Jorge de Senna

Acordei cedo e coloquei as coisas todas nos seus devidos lugares, devolvendo o livro de Sena a prateleira — não sem antes ler mais um ou dois poemas. Fui para a varanda aproveitar o sol da manhã. Fazia frio na sombra… E, ao olhar lá para fora, pensei no texto que escrevi ontem, a respeito das minhas andanças e recordei lugares visitados pelos meus passos.

Quando eu vivia em Coimbra quase todos os caminhos me levavam a uma livraria. Nos primeiros dias, descobri várias: pequenos paraísos escondidos por trás de uma pequena porta. Aqui em São Paulo, há duas ou três pelos lugares em que passo; ocupando os espaços de uma casa, sendo possível saber onde era o quarto-sala-cozinha. Transitar por ali era um pouco estranho… porque visto a sensação de ser penetra na casa de alguém.

Foi numa dessas livrarias de bairro que conheci uma personagem que me intrigou à primeira vista. Uma figura apaixonada por Clarice… que estava a frente de um evento a respeito da escritora nascida na Ucrânia.

Quase uma hora de falatório clandestino depois, fui me sentar no Café para pensar a respeito do que tinha ouvido: tudo e nada. Não fazia ideia de quem era a Clarice daquela mulher-professora que parecia incorporar a escritora, numa sessão espirita. Eu tinha uma visão diferente da escritora.

O café chegou ao mesmo tempo que a professora, que se convidou à minha mesa… Fez perguntas e pediu opinião. Falou de Clarice mas, não era da escritora que falava… era de si. E eu fiquei interessada em saber em que momento a confusão se deu.

Nos tornamos correspondentes durantes os meses seguintes. Soube que ela tinha o mesmo modelo de máquina de escrever de Clarice e a mobília de seu quarto era idêntica a da escritora. E eu percebi que a mão que escrevia não era a dela. Havia trechos inteiros de Clarice misturados aos dela.

Eu queria desvendar o mistério.

Nos encontramos no acaso dos lugares alternativos que a cidade oferece. Trocamos acenos, beijos de estalo e meia dúzia de palavras. O nosso último encontro se deu em um Café. Estava a brigar com as palavras quando o corpo dela despencou na cadeira e as coisas todas foram despejadas em cima da mesa.

Ela não estava nada bem. Olhar fundo, expressão pesada. Tinha chorado muito. Seu corpo era um amontoado de coisas muitas. Estava em ruínas… Falou ininterruptamente na meia hora seguinte. E quando fez silêncio, distraiu-se com o movimento das ruas e voltou-se para Clarice, em fuga. Mencionou o estado emocional da escritora em suas últimas horas de vida. E voltou a si, ao falar da morte de seu Gato.

E como se um gesto dependesse de outro… segurou minha mão e quis saber: você já perdeu alguém? Eu engoli uma resposta que quase escapou dos lábios. Menti. Disse que não! Ela se irritou, como se soubesse se tratar de uma mentira Todo mundo sofre perdas. — retrucou. Você sabe disso, eu sei. É impossível viver sem enfrentar essa dor. Você perdeu alguém. Quem?

Insiste em contrários e não gerei emoção alguma em meus gestos. Evitei todos os ontens. Ela rugiu e acendeu um cigarro, despejando no ar… pesadas baforadas. Que cena mais linda! Minha própria tela de Hopper. Ao terminar seu vício, avisou que não daria certo. Não confiava em mim. Disse que pensou que seríamos amigas. Algo novo em sua vida. Revelou — num sem-voz — ser uma figura solitária e finalizou oferecendo o que eu dizia não ter experimentado: serei a sua primeira perda.

Fiquei olhando aquela fumaça branca se dissipar no ar. Ela recolheu as suas coisas e foi embora, atravessando a rua. Acenou para os carros-brancos que passavam até que um deles parou. Respirei fundo e reparei na Livraria, ao fundo, para onde eu fui, zanzar entre prateleiras, esbarrar em livros.

Não voltei a ler Clarice depois disso, mas não foi uma perda. Minha fase Lispector foi bastante intensa. Consumi muito de seus textos. Mas nunca nos misturamos. Somos duas estranhas. Não escrevi a ela, como acontece com alguns escritores que leio, porque nunca tive nada a dizer para ela.

Nesse novembro [entre outras coisas] vamos de #blogvember…
Aventuram-se em linhas diárias: Mariana GouveiaObdulio Nuñes Ortega,
Suzana Martins e Roseli Pedroso

Publicado por Lunna Guedes

Sou sagitariana. Editora de livros artesanais. Autora de romances. Degustadora de café. Uma típica observadora de pássaros, paisagens, pessoas e lugares. Tenho fases como a lua... sendo a minguante a minha preferida!

12 comentários em “* Duas vezes me findei antes do fim

  1. Como diria aquela que se foi, sem nunca ter ido: “Vida é o desejo de continuar vivendo e viva é aquela coisa que vai morrer. A vida serve é para se morrer dela”. Que história incrível, Lunna!

Pronto para o diálogo? Eu estou (sempre)

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