Somos o círculo das mulheres-loucas que se sentam no salão do hospício 

Cara Llansol,

Como fez calor neste dia. Tudo — das paredes ao asfalto — ardia num insuportável dourado… de queimar a retina e incomodar músculos e nervos desacostumados ao calor dos trópicos. Os termômetros das ruas anunciavam os seus quase trinta graus e eu me senti no próprio deserto… a marchar sem sombra, a perder as forças e a pouca sanidade que ainda preservo. As coisas por aqui não estão nada fáceis por aquiE o meu olhar, quando precisa de paz, mergulha em versos…

Fiz a feira pela manhã e voltei para casa saltando de sombra em sombra das árvores, enquanto agradecia por estarem lá. Há partes nesta cidade em que não encontramos nada de verde.

O dia foi estranho… Tudo parado por causa de algum feriado! Colei o fone nas orelhas e “perfect day” — uma música antiga — ofereceu-se… uma pequena ironia para esse dia tão azul. E enquanto ouvia os versos: “I say a prayer now your love’s departed that you’ll come back to stay. Bring back the perfect Day” — sentei-me aqui na varanda e trouxe comigo uma pilha de livros meus e me lembrei de você, como se um sopro morno de vento tivesse atingido o meu rosto…

A mulher-poeta-portuguesa sentada na soleira da porta, fumando um cigarro e despejando fumaça no ar. Eu não te conhecia… Mas a imagem primeira grudou nos meus olhos. Figura encolhida, amontoada em seus músculos e nervos. Pensei que fosse a dona da casa… a pessoa a abrir a porta para artistas de diferentes gerações para um Sarau que teve inicio e você foi apresentada. Os aplausos se espalharam pelo cômodo, onde um palco foi improvisado. Você tinha em mãos um punhado de folhas avulsas e despejou no ar, com sua voz rouca e pausada, o seu primeiro poema: atraindo a minha atenção.

Somos o círculo das mulheres-loucas 
que se sentam no salão do hospício 
e sorriem conformadas para a dama andrógina
que nos passa um Sino e ensina
o movimento certo de mão 

ser velha, ser velha! …é o que parece dizer
o som que se repete
e repete… como se quisesse me convencer!

Eu estava no canto, perto da janela, dividindo o olhar com a paisagem da casa e o palco improvisado no meio da sala. A sua voz parecia passar por pequenas frestas no chão e madeira, alcançando outros cômodos. Comprei um de seus livroe de poesias, espalhados em cima de uma mesa. O escolhi pelo título: na casa de julho e agosto e comecei a leitura na soleira da porta, como se ocupasse o seu lugar — propositalmente.

amanhã é um novo poema | você vai me ler e eu vou te ler | e que não fique apenas nisso”.

A pele vestiu arrepios e eu vaguei lugares inteiros através deste teu poderoso verso. Eu vivia uma década de incertezas. Todas as coisas do mundo estavam no seu devido lugar; menos eu, que tropeçava nos cenários de outra pessoa. Faltava-me, contudo, consciência ou lucidez para compreender meus movimentos.

Quando voltei a mim, você estava a despejar suas baforadas fedorentas no ar. Te olhei de tão perto e a vi longe, ausente — do outro lado do meu mundo. Você quis saber o que eu escrevia e eu sorri ao mesmo tempo em que balançava a cabeça de um lado para o outro. Repeti a dissonância: sou psicanalista. eu não escrevo, eu ouço pessoas. Você sorriu e voltou a tragar. Tem alguma coisa sua para eu ler? — insistiu. E até hoje não sei porque retirei do bolso da calça uma folha de papel dobrada em quatro e a entreguei em tuas mãos. Era uma missiva escrita ao som de Heroes do Bowie. Não estava finalizada… tinha começado a escrevê-la dentro do trem, a caminho de Lisboa.

Você leu… dobrou o papel e me devolveu. Ficou em silêncio por alguns segundos, deu uma última tragada e depois jogou a bituca no chão, amassando-a com o pé esquerdo. Gesto rude que me incomodou. Pessoas fumantes tiram a minha paz quando descartam seus restos de vício no chão. Você esticou a mão e pediu o livro. Relutei em entregá-lo, mas o fiz. Escreveu na última página do exemplar, o que eu pensei se tratar de um autógrafo. Não era. Da próxima vez que for escrever uma missiva, favor usar esse endereço.

Perdoe-me se nunca recebeu notícias minhas em todos esses anos. Tantas coisas aconteceram-me. Eu não deixei de ler-te e de provar diferentes formas de arrepio através dos teus versos. Soube que a tua escrita não se pode rotular. Li em algum lugar que você passeia pela poesia, ensaios, diários. É um enigma cheio de furor. Não sei porque leio essas bobagens. Uma dessas figuras acadêmicas, disse em um artigo que a sua escrita abandona a literatura. Pensei: quanto perspicácia. Deveriam nos brindar com o silêncio porque é visível que só fazem barulho.

Eu, não lhe escrevi porque nada tinha a dizer.-te. Eu passo muito tempo em silêncio, a imaginar palavras riscadas em paredes e muros. Mas eu lhe sou grata pela companhia em todos esses anos. E se hoje nos encontrássemos e a pergunta fosse (re)feita, a resposta seria outra. Eu teria algo meu para ler… Mas, como disse Cecília, as coisas nunca acontecem no tempo das coisas.

Abraços da tua leitora

Sempre preciso esquecer o quanto
uma palavra consegue escolher uma outra,
educar uma outra, até juntar algo que eu
poderia ter dito… mas não disse.

Seu negócio é vigiar minhas palavras.
Mas não admito nada.

Nesse novembro [entre outras coisas] vamos de #blogvember…
Aventuram-se em linhas diárias: Mariana GouveiaObdulio Nuñes Ortega,
Suzana Martins e Roseli Pedroso

Publicado por Lunna Guedes

Sou sagitariana. Editora de livros artesanais. Autora de romances. Degustadora de café. Uma típica observadora de pássaros, paisagens, pessoas e lugares. Tenho fases como a lua... sendo a minguante a minha preferida!

6 comentários em “Somos o círculo das mulheres-loucas que se sentam no salão do hospício 

  1. Taí um título que também levaria para casa sem indicação alguma: “na casa de julho e agosto”. Parecem profecia os versos: “amanhã é um novo poema | você vai me ler e eu vou te ler | e que não fique apenas nisso”.

Pronto para o diálogo? Eu estou (sempre)

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