* Coração transplantado procurando resquícios do que já foi humano

 * Lua Souza (estratosférica)

Uma das coisas que marcou a minha infância foi o sumiço da menina no Parque — que chegou à cidade e começou a semear seus brinquedos… numa área livre. Uma das últimas, na vila em que morava. Em dois dias de trabalho, brotaram do chão: roda gigante, carrossel, xícaras malucas, carrinho bate-bate, a famosa montanha russa e a tal tenda dos mistérios — onde tudo aconteceria. Ao menos para mim, aquele era o ponto final da história, que se repetiu durante dias, de boca em boca.

Investigou-se o lugar. Interrogaram as pessoas e procuraram pela menina em toda a parte e nada se descobriram.

No dia em que tudo aconteceu, as crianças da rua inventaram uma aventura: ir até o parque, sem os adultos. Eu, que tinha fugido de casa, algumas vezes… me uni ao grupo, sem medos-receios.

Assim que chegamos ao Parque, eu me distrai com a engrenagem da roda gigante, em fase de testes. As luzes se acendiam e apagavam. Todos os controles eram testados… enquanto as outras crianças se encantaram com os cavalinhos do carrossel. Eu não achava graça em nada daquilo. Tinha cavalgado um puro sangue, com o nonno… não iria me interessar por cavalinhos inanimados.

Fui dar um giro solitário e acabei diante da famosa tenda dos mistérios. Parecia um circo pequeno e na parado na porta havia um homem fantasiado de palhaço. Não me lembro de sentir tanto medo na minha vida. Os olhos dele eram enormes… horríveis e cresceram para cima de mim.

Senti a minha alma deixando o corpo e conforme ele avançava em minha direção, fui recuando… Dando passos para trás. De repente… um frio subiu dos pés à cabeça. Foi a pior das sensações. Eu não me lembro como tudo ficou tão pequeno.

Corri o mais rápido que eu consegui… e só parei ao chegar à casa — apavorada, com o cuore a dar pulos dentro do peito. Grudei no primeiro adulto que encontrei. O meu corpo inteiro tremia. Estava exausta e a respiração errática.

Acordei assustada… com o som de falas que aconteciam na sala. Sem saber quanto tempo havia se passado e sem conseguir distinguir se era sonho ou realidade, saltei da cama e desci as escadas, em pares. Os pais da menina e dois policiais, conversavam com os meus. Espiei todas as figuras, em pares, no meio da sala. A mãe visivelmente abalada. O pai a fingir força, mas prestes a fraquejar.

Quando todos foram embora, fui parar no colo de C., que me contou a história de horror, que tomou conta de todas as conversas durante dias, semanas, meses.

Nunca mais se viu a menina.

A mãe enlouqueceu… Via a filha, em todas as crianças, da cidade e as interpelava. Era vista na porta da escola e a gente experimentava a tristeza dela. O pai passou a beber… vagava desiludido pelas ruas e acordava pelas calçadas. Depois de algum tempo se mudaram. A casa ficou vazia por muitos anos. Ninguém se interessava por morar ali. Como se o imóvel fosse culpado pelo desaparecimento da menina.

Durante muito tempo, sonhei com o tal palhaço. E o medo virou horror pela figura com a cara pintada, vestindo peruca e roupas coloridas. Até hoje quando me deparo com essa figuras, sinto faltar forças nas pernas e o cuore dar pulos dentro do peito.

Nesse novembro [entre outras coisas] vamos de #blogvember…
Aventuram-se em linhas diárias: Mariana GouveiaObdulio Nuñes Ortega,
Suzana Martins e Roseli Pedroso

Publicado por Lunna Guedes

Sou sagitariana. Editora de livros artesanais. Autora de romances. Degustadora de café. Uma típica observadora de pássaros, paisagens, pessoas e lugares. Tenho fases como a lua... sendo a minguante a minha preferida!

9 comentários em “* Coração transplantado procurando resquícios do que já foi humano

    1. Noup.

      Mas participei de um ensaio da Vai Vai porque ao chegar ao Brasil todo mundo achava que eu queria conhecer samba e ir para a Avenida. Mas nem de samba e tampouco de carnaval eu gostava, RS

      Mas acho o ritmo do Maracatu bonito.

Pronto para o diálogo? Eu estou (sempre)

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