Suzana Martins, in: “As Estações”
Há quem diga que uma criatura que escreve só se torna um escritor após publicar um livro. Confesso que isso me diverte. Penso que um escritor se define ao caminhar pelas ruas de uma cidade, observando tudo com olhos de primeira vez: colhendo detalhes que ninguém mais no mundo inteiro, seria capaz de colher — para depois de uma noite tranquila de sono, acordar num susto e enxergar um mundo que não é nem de longe aquele de antes. E como um louco, insano, perturbado, abandona a si mesmo num canto qualquer para ser outro — como o personagem de Kafka, a viver sua metamorfose.
Possuído por esta estranha figura, ele desvenda o lugar em que vive. Sai de casa para ir às compras, passando por ruas que são suas e de mais ninguém; que revelam o inesperado como uma menina que sorri quando ele passa e acena com todos os músculos e nervos de seu corpo. A experiência o atinge feito um raio e ele vai compreendendo suas emoções… uma a uma.
Para um escritor, tudo que ele toca com qualquer um dos seus sentidos é parte de um mundo que ele irá traduzir em palavras. Qualquer pessoa pode ser o personagem principal de uma trama, basta que um pequeno gesto desperte a atenção-interesse dele…
Como escreveu Sylvia Plath em seu diário: — Amo as pessoas. Todas elas. Amo-as, creio, como um colecionador de selos ama a sua coleção.
Todas as vezes que me perguntam: como surge um personagem? — eu respondo: sofro de transtorno de personalidade. E vejo reações de diferentes tipos. O fato é que eu me misturo de tal maneira ao outro que, em algum momento, fico em dúvida se restou alguma parte de mim. Talvez por isso tantos autores deixem escritos inacabados, no fundo da gaveta.
Fernando Pessoa criou inúmeros personagens, denominados “heterônimos”. Todos eles, com exceção de um, tinham começo, meio e fim. Álvaro de Campos só teve começo e meio. Coube a ele o desafio da eternidade. Dentre todos, é sem dúvida, o mais próximo de ser uma sombra do poeta-portugues-metafísico… Talvez todos os outros tenham servido de ensaio para Campos. Um exercicio natural e necessário para quem escreve é treinar a construção de um personagem. Uma criança leva nove meses para nascer, mas outros tantos anos para ficar pronta. Não nascemos prontos e, ninguém é capaz de afirmar quanto tempo precisamos. O mesmo acontece com um personagem. Há os que nascem de estalos e os que precisam de dias-semanas-meses-anos — uma vida inteira.
E por isso se torna tão difícil se despedir de um personagem. Eu passo tanto tempo na companhia dessa persona que ele ganha dimensões que vão além da compreensão de uma pessoa comum. Escrever a palavra fim na última linha — determinando o destino final dessa criatura — é o mesmo que assisti-los morrer. Mesmo sabendo que estão lá — vivos, em suas páginas –, de certa forma.
Quando suas vidas se explicam, suas tramas se finalizam. Nada mais pode ser feito. Tudo que resta é a ausência, uma espécie de vazio não será preenchido por algo-alguém.
Nas primeiras horas, sinto falta da compreensão íntima e silenciosa. Da cumplicidade que me permite entender todo e qualquer ato. Eu não o condeno se ele mata, rouba ou se é a pior das criaturas. O aceito como é, sem pedir que seja diferente porque sei que criei cada um dos elementos que ele apresenta. Sou responsável pelo backstory dessa criatura… e soube desde o primeiro contato que seria assim… Seria injusto pedir para que fosse diferente. Claro que ralhei com vários no decorrer de suas construções. Mas, compreendi que o toque da imperfeição é o que faz deles, humanos — condição necessária para serem o que são: personagens.
Para Robert Mckee, o que diferencia um artista de um ser humano comum é a capacidade de absorção de informações. A vida de um artista é uma eterna pesquisa: de informações, sentimentos, jeitos e trejeitos. É uma busca incansável de entender o humano que nada mais é que um simples personagem e sua história uma narrativa sendo desenhada para que outros saibam de sua existência…
Nesse novembro [entre outras coisas] vamos de #blogvember…
Aventuram-se em linhas diárias: Mariana Gouveia, Obdulio Nuñes Ortega,
Suzana Martins e Roseli Pedroso
Escritor é essa pessoa especializada em ouvir o que ninguém fala.
Recebi ontem uma carta da Biblioteca Nacional, estou cadastrado. =), e um livro a caminho.
Lu
Vc definiu bem, o escritor é acima de tudo um bom observador. belo texto.
Minha querida, que texto divino! Me vi nele em vários momentos e achei o máximo como vc falou tudo, de forma tão clara e precisa e definiu tão magnificamente o que é um escritor:
“um escritor se define quando este caminha pelas ruas de uma cidade e observa tudo com olhos de primeira vez: colhendo detalhes que ninguém mais além dele seria capaz de colher.”
Simplesmente, amei!
Beijo do tamanho do mundo pra vc! 🙂
Interessante o post, sendo que ai resta as pessoas definirem se querem ser os próprios personagens, ou simples o personagem da vida dele…
Fique com Deus, menina Lunna Guedes.
Um abraço.
Disse tudo, tem que estar em contato com, a sensiblidade em “flor”, conectado com o universo, nem que seja apenas o nosso e mais nada.
Lindo texto, amei de verdade.
E como sua leitora, entendo, porque consigo mergulhar profundamente nos personagens que você cria. Parabéns.
PS. Eu ao a Anne Letrech e a Deborah Bodeh, mas não gosto de Alice, porque ela e muito real para mim. Foi uma história muito difícil de ler. Conheço mais Alices do que realmente gostaria.
Bjusss
Sil
O escritor vive uma constante troca de almas. Em um momento ele encarna em um corpo, no outro regressa ao seu.Talvez o escritor seja uma entidade perdida – e olha que nem sou espirita.
Mas penso que sua percepção é única; como se houvesse vários espiritos dentro de si, ou várias vidas vividas.
Bju
E com que facilidade você lida com as palavras e recria o mundo pelos seus olhos!
Eu observo tudo, cada detalhe, mas não tenho o dom de transformar o olhar em palavras…
Magnifico! 😀
Lunna,
A criação de um personagem é uma arte e eu já li muito a respeito. Nâo cheguei a conclusões como você. Até por não viver isso na própria carne. Sou leitora e adoro um bom romance. Me envolvo de todas as maneiras possíveis com um personagem. É algo que me atinge em cheio. A primeira vez foi com o personagem de O Colecionador. Nossa, foi algo estranho e magnifico, sabe? Depois vieram outros. Alguns de filmes, novelas e livros.
Grata por compartilhar sua vivência. O texto ficou incrívl
Beijo grande!
Enquanto lia comparava o escritor a um rizoma de gengibre. Você corta um pedaço (morre o personagem) e logo ele começa a brotar naquele mesmo lugar, um outro pedaço. A peça principal está ali, central! Quantas saudades deve sentir de seus personagens, heim? Beijus,
Lunna, cara mia, você foi precisa na descrição do criador e criaturas. Texto incrível!
Até hoje converso com alguns personagens meus e com alguns seus também. Sou dessas. rs
Observar o detalhe, pulsar o olhar e derreter a estação em letras… ❤
Cara mia, vc é maravilhosa!!!