* Flávia Côrtes, As Estações
Não sou o tipo de pessoa que prepara a mesa, a casa, os pratos… Gosto de arrastar a criatura — que aceita o meu convite — para a cozinha, onde combinarei todos os elementos. Não tenho toalha de linho-antigo com não sei quantos fios. Gosto da textura da madeira da mesa, que me remete à infância. A da casa da nonna tinha uma mancha escura num dos cantos, provocada por uma das filhas dela, que não herdou a habilidade em lidar com os ingredientes. Mas insistia em participar das atividades. Não tenho louça que viajou o mundo. A minha foi entregue pela transportadora, vinda diretamente de um galpão, dentro de uma caixa de papelão prestes a se desmanchar. Escolhi pelo formato (quadrado) e a cor (preto)… e as xícaras vieram juntas.
Para essa tarde de encontros… escolhi fazer uma receita de pão. Tinha pensado no bolo, mas não era quinta ou domingo — dia em que preparo a massa-base e por último, escolho o sabor. Bolo é rotina e não combina com alguém passando pela porta, com hora marcada para papos e goles.
Eu ainda tinha alguns quadradinhos na lata, mas não combinavam com a visita — palavra estranha com a qual nunca me afeiçoei. Me lembra a casa da tia e suas manias tupiniquins. Se existe alguém que merece a cidadania brasileira, é aquela senhora. É admirável como não restou nada de suas origens. Eu sigo sendo: tipo exportação. E não consigo me adequar-acostumar… E lá se vão não sei quantos anos de Paulicéia. Mas sigo estranhando-me… Respiro fundo e finjo demência. Isso eu aprendi com a mãe das duas, no caso: minha avó materna, com quem nunca me dei bem. Ela queria me ensinar a ser discreta, como achava que toda mulher deveria ser… Discreta, eu? Rá…
Coloquei a chaleira no fogo e fui separando as folhas de hortelã, comprada na feira de domingo. A senhora das ervas sorriu ao separar um belo maço-perfumado. Se tem uma coisa que me agrada é a hora do chá. Deitar a água quente na xícara e compreender o tempo da infusão. É puro encanto, como os poemas de Flávia Côrtes nos cadernos de As Estações… Eu tenho paixão por esse instante que nenhum ponteiro alcança. Não existe tempo dentro de uma xícara de chá. O que existe é Kairos… o momento. Nem antes e nem depois.
Enquanto esperava… peguei a tigela e fui colocando os ingredientes. Gosto desse momento, em que os olhos crescem, tentando entender as medidas. Um pouco de trigo. Fermento de boa qualidade. Uma pitada de sal. Dois punhados de açúcar. Manteiga. Um copo de iogurte natural. Água morna e leite aerado. Misturo tudo com calma até mudar de cor e vou adicionando — a chuva de — trigo. Amassa e amassa e amassa até desprender da mão. Pães prontos… deixo crescer para levar ao forno.
Enquanto isso, bebemos mais uma xícara de chá… em pequenos goles. Aparecem as histórias acumuladas na soleira da pele, da alma, do cuore e da memória… Basta puxar um fio e a conversa cresce, dobra de tamanho, como o pão que vai ao forno e pouco depois deita no ar aquele aroma que faz o estômago cantarolar-feliz.
Gosto quando ainda quente… a faca desliza, fatiando-o. A nonna rasgava com a mão, pequenos gomos amanteigados. Uma delícia! Mas com a visita — olha a palavra esquisita aí de novo — a gente finge educação e agrada a outra avó, se comportando com discrição. Passa a manteiga batida com ervas que se deixa derreter ao toque… e pronto. Ritual que se cumpre. E alguns segredos e mistérios preservados…
Neste novembro [entre outras coisas] vamos de #blogvember…
Aventuram-se em linhas diárias: Mariana Gouveia, Obdulio Nuñes Ortega,
Suzana Martins e Roseli Pedroso
Que texto saboroso!! Sonoridade, visual, paladar que fez estômago sorrir e a boca salivar. Adorei!!
Toc toc. O cheiro da hortelã e do pão chegaram até aqui. Felicidade nada clandestina!
Adorei o pão a crescer ao ritmo das conversas… e a manteiga a derreter!
O meu estomâgo também cantolaria feliz!
Eu conheço todos esses movimentos e meu lugar preferido é a mesa – adoro quando me envia fotografias com livros nela – até aliso a madeira na foto. Sempre me lembro da vez primeira, com Patrick ao pé de mim querendo um pedaço do bolo. E do café… ah, o café. Vou ali fazer um. Aceitas?