* E mil orações aos céus para a vida apagar de uma vez

* Flávia Côrtes, As Estações

Enquanto aguardava pela infusão do chá… Olhei em volta e dei pelo silêncio dos cômodos. O canto do sofá à minha espera. O caos na minha mesa de trabalho e a disciplina da cozinha. Tudo em ordem… Respirei fundo, sentindo o aroma do mate no ar e comecei a escrever por dentro, nas paredes do corpo — uma espécie de tatuagem invertida.

Eu não sinto falta de nada… era o que eu deveria ter dito a Mariana, durante uma conversa que tivemos na hora do almoço. Mas apenas tomei nota da frase, como se fosse uma nuvem solta no ar.

Eu tenho uma vida para talhar e urdir e esses dois verbos me seguem desde a infância. É coisa do nonno em seus ofícios humanos; ele gostava de esculpir a madeira e construir. Ele tinha rituais de toque. Uma organização peculiar… e um talento para transformar uma simples folha de maneira em uma peça única. Tudo que fazia era impressionante. A maneira como lidava com os cavalos ou como colhia um cacho de uva. Eu tentava imitá-lo em quase tudo. Mas o que eu mais gostava… era das nossas cavalgadas.

Foi ele quem fez o meu primeiro baú… e entregou em minhas em um 29 qualquer. A caixa para guardar a correspondência, as folhas e os gravetos. E a do meu diário…

Com ele eu aprendi a compreender o tempo, observando os ponteiros de um carrilhão que fazia as paredes, o chão e o meu corpo estremecer de hora em hora… um susto, dois sustos e assim sucessivamente até me acostumar com aquele ranger espetacular. Foi ele quem primeiro falou de Kairos, iniciando-me nessa jornada de acumular momentos e não me importar com Chronos e sua simbologia tão admirada pelos homens.

Eu não sinto falta do que passou… Gosto imenso de olhar para trás e ver a pessoa que eu era, ao lado de pessoas que forjavam a minha matéria. Saber do que sou feita e de onde venho. Reconhecer no espelho cada traço herdado. Todos eles me deram tanto e, a cada dia, tudo que faço é retribuir porque gosto imenso de quem sou… Sei das minhas esquisitices e chatices. Das manhas e manias. 

Às vezes, sinto o sorriso vindo lá do fundo e se esparramando pelo meu corpo. Recordo o babo com suas falas sérias e precisas convertidas em sorrisos durante as nossas conversas malucas. Como era bom discordar dele. Vê-lo mudar de cor ao se esforçar para não perder a calma-paz e não elevar o tom de voz. Com outras pessoas, ele era sisudo e breve. Comigo se demorava uma vida inteira. Que privilégio ser causa daquele sorriso que começava nele e terminava em mim. Os dois enroscados num abraço-de-urso. E o sorriso se apaga porque a emoção cresce e os olhos transbordam. E eu ouço a voz aveludada da Cris, dizendo suas coisas bem pontuadas: apenas respire antes de dizer qualquer coisa. Vai ajudar a manter as tempestades no lugar delas: ai dentro. Ela tinha razão, mas eu levei uma vida inteira para admitir isso. E caio na risada e falo com as paredes: deve estar orgulhosa de mim… Mas eu gostava de esbravejar, perder a calma, a paz. Apenas para ouví-la dizer essa frase inteira. Era o mesmo que ganhar um abraço. Gostava imenso de dar as mãos a ela, para não me perder pelos caminhos e ser guiada, mesmo depois que a infância passou, eu procurava por isso. As outras meninas da minha idade tinham vergonha de suas mães. Eu nunca senti isso. Ela era a minha melhor amiga-companhia… A quem confiava as minhas histórias e todos os segredos. Eu sabia que podia confiar nela, contar com a cumplicidade…

Outras pessoas apareceram em minha vida-realidade… Algumas ficaram pelo tempo de uma tempestades. Outras um pouco mais. Uma coisa que eu aprendi com a nonna e que eu levo comigo é: deixar ir… De repente você se dá conta de que não é filha, irmã, amiga, vizinha… de ninguém. Por isso é importante saber quem é e de que matéria somos feitos.

Neste novembro [entre outras coisas] vamos de #blogvember…
Aventuram-se em linhas diárias: Mariana Gouveia, Obdulio Nuñes Ortega,
Suzana Martins e Roseli Pedroso

Publicado por Lunna Guedes

Sou sagitariana. Editora de livros artesanais. Autora de romances. Degustadora de café. Uma típica observadora de pássaros, paisagens, pessoas e lugares. Tenho fases como a lua... sendo a minguante a minha preferida!

8 comentários em “* E mil orações aos céus para a vida apagar de uma vez

  1. Que texto de bom gosto! Adorei o estilo, leve e elegante.
    Saiu daqui me sentindo muito bem e grata por te lido o seu comentário no outro blog.
    Me agradou bastante.

    Grato

  2. Eu gosto do prazer de estar só. Gosto de cinema, de mar, de bares. Gosto de música e de livros, aprecio as artes. Gosto de quem gosta de mim. Gosto de espelho, de maquiagem, perfume, saias e vestidos. Gosto de falar, de tomar café ralo, de queijo branco. Gosto de sentar para apreciar o nada. Gosto de me apaixonar, gosto tanto que até invento amor.

    Beijos,

  3. As rajadas de vento e os pingos fortes avisam que vem tempestade chegando… assim como ler você, Lunna, vem essa sensação de se atirar na chuva, levar um susto no começo e depois se acalmar, pois somos parte do processo de a água lavando tudo…

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