Caríssima Nirlei,
O sol insiste lá fora e as nuvens também — preparei uma xícara de chá e estou naquele intervalo sagrado… Antes do primeiro gole. Gosto desse tempo, apenas meu. Uma espécie de hiato: aurora e crepúsculo. Eu prefiro o cair da tarde. Lembra Tom e seu “passarim” que quis voar…
Sou uma criatura noturna — notívaga que procura pelo canto do sofá para espiar os movimentos, enquanto a mente articula-se em processos insanos.
Sopra um vento, agitando as cortinas — pronto. Lá vai a memória resgatar um ontem qualquer e o imaginário faz o restante do trabalho. A pele, em estado de dormência, vai aceitando as palavras que vão se encadeando umas nas outras e formando frases. Algumas se perdem no abismo que-sou — outras transbordam e caem no papel. Gosto imenso deste ritual que depende de tudo que tenho-sou. Campos escreveu que era um baú que de tão cheio: transbordava. E esse verso lido por um amigo, grudou em mim. Depois vieram outros desse homem-Pessoa. Embriago-me ao debruçar os olhos em suas páginas… O que me encanta na poesia, é esse acolhimento. Os versos ficam na pele — se espalham. É como pular num monte de folhas.
Trago dentro do coração
Como num cofre que não se pode fechar de cheio…
Todos os lugares onde estiver, todos os porcos a que cheguei,
Todas as paisagens que vi através de janelas
E com esse poderoso verso, me despeço.
Au revoir
Me sinto intrusa em todas as cartas. Parece que estou a folhear diário alheio. Agora, entendo quando tu diz isso.
Que delícia receber uma carta tão linda e poética! O coração fica aos pulos de tanta alegria!