Cara Mariana,
Os pássaros cantaram na minha madrugada e eu despertei com eles na minha varanda. Sorri a dúvida de sempre: real ou imaginário (?) — sonho eu sabia que não era porque não sou uma pessoa que sonha. Meu sono é tranquilo, sem agitos. Eu apago — desligo-me de tudo.
Na infância eu acordava em queda, espatifava-me contra a cama e passava as horas do dia tentando juntar os meus cacos. Sensação estranha que atravessava o dia. Na juventude, passei a sonhar que estava saltando por cima dos telhados vermelhos. Fugia de algo-alguém e era habilidosa ao escalar muros e pular para os telhados, saltando de um para o outro. Acordava exausta. Bocejava durante horas e não havia alongamento que melhorasse a condição dos músculos e nervos extenuados.
Eu tenho fases… de acordar cedo. Voltei a dormir noites inteiras recentemente. Os olhos começam a se fechar e a mente vai se desligando da realidade, como se pedisse uma trégua das coisas do dia: parar de ler-escrever-pensar. Acordo cada vez mais cedo… e sinto o lugar. Observo as anatomias dos prédios, a quietude das ruas. Ouço o som dos pássaros. Sinto o frio da brisa paulistana que é meio marítima, meio poluída. Gosto imenso da fina camada de névoa que se demora mais nos ares e sei que será um dia de sol. As pessoas pensam ser nuvens, mas não é. Por isso comparavam Sampa com Londres.
Ontem, no começo da tarde, tudo mudou por aqui e nem estava quente o suficiente para uma Tempestade. Mas os ventos trouxeram as nuvens de algum lugar. O horizonte ficou todo azulado, mas não era o tom dos Brigadeiros… era mais denso, pesado, sombrio — como tanto gosto. Eu parei tudo que estava fazendo para espiar a força dos ventos, que traziam grandes chumaços de nuvens que se esparramaram por cima do bairro. Tudo tão rápido. Os trovões foram se aproximando e, de repente, explodiram sonoros ao meu redor. As luzes foram se acendendo e eu gritei por dentro: ah, meu novembro!
Eu já contei que passei a chamar Novembro de novelo quando eu tinha uns seis anos? Era a época de fazer luvas, meias e cachecóis de lã. Os novelos ficavam em um cesto — deixado em cima da mesinha, ao lado da lareira e para lá íamos todos, com xícaras de chocolate quente, após o jantar. E a primeira história que se contava ali, era a minha. Todo ano a mesma coisa. E ninguém reclamava.
A menina que nasceu Tempestade.
E enquanto ouvia, recolhia os pedaços de fios de lã que sobravam e com eles, eu unia os pins do meu mapa-secreto, feito debaixo na cama, no estrado… Eu colava fotos, recortes de revistas e jornais, folhas, gravetos… Tudo que eu considerava importante naqueles dias.
Os meus pais foram os únicos a ver. Como ele não conseguia entrar lá por causa do tamanho, levantou a cama e exibiu para nós três os meus cardeais.
No ano seguinte, ganhei um quadro de cortiça para a parede e uma caixa com pins coloridos. Ainda ouço sua voz de homem-babo ressoando em minhas memórias: onde vai ser o Norte? Eu peguei a minha câmera polaroid e fiz uma foto nossa, que ficou pronta em um minuto. Finquei no centro da cortiça. Cruzei os braços e sorri para os dois que estavam com os olhos cheios. Ganhei abraços e fui levada nos ares — pelas mãos dos dois — até a cozinha: xícara de leite caramelado e a lata de biscoitos da nata.
Hoje, minha cara — pela primeira vez em todos esses anos –, percebi que preciso pensar no que fazer com aquela casa. Sinto que ela não mais me pertence. Sensação estranha e maravilhosa ao mesmo tempo. Talvez seja tempo de começar a pertencer a algum lugar…
Au revoir
Que coisa mais linda! Li e reli várias vezes… aqui, chove e meu cuore chama seu nome ❤
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Das cartas que recebi!