…”por fora, é crivada de espinhos, uma verdadeira fortaleza […] dentro é tão simplesmente requintada quanto os ouriços, que são uns bichinhos falsamente indolentes, ferozmente solitários e terrivelmente elegantes”
A Primeira leitura aconteceu ainda na livraria, entre prateleiras, em pé. O virar de página, impulsionado pela sede-fome. Descobria as personagens, a cidade, o lugar, os moradores do elegante prédio parisiense, os vizinhos que se sabem, mas que não se conhecem.
O livro e sua imprevisível trama… te convida a reflexão através de personagens comuns. Uma empregada que nasceu para ser rainha. Um senhor japonês misterioso. Um crítico gastronômico a beira da morte. Uma concierge que se esforça para ser menos do que é… e uma jovem adolescente, em crise, que marca a data de sua morte e começa seu jogo de vida. Escreve um diário. onde relata suas últimas vivências. Sempre calada e pensativa, a única a prestar atenção em Paloma, é a senhora Mitchel (Renée) a velha-baixinha-gorda-e-feira como toda concierge deve ser.
A segunda leitura aconteceu dias depois… com um pouco mais de calma. Apenas um capitulo por dia. Muito embora, o espanto da primeira-leitura, ainda estivesse na pele-alma.
A história combina tantos elementos que é como se sentar em um carrinho de montanha russa. Há humor ácido em algumas páginas. Tristeza profunda, em outras. Reflexão… e a famosa pergunta: como foi que chegamos a isso?
Olhamos e não vemos, alimentamos o nosso ego com tolices e deixamos passar o outro, com uma carga imensa de conhecimento, porque o limitamos a uma palavra, feita para atender as nossas necessidades primárias. As pessoas desse século, não são pessoas, como disse Marx, em seu livro, citado imediatamente na primeira página, por um dos personagens andróginos de Muriel Barbery — que está lá e não está em cena. Não nos serve, mas é parte do sistema, dessa grande roldana, a compor essa engrenagem prestes a colapsar.
Renée quase se trai diante da frase — sem sentido — dita pelo homem, que acredita ter feito a maior das descobertas deste século. Ela, afirma que para entender Marx, é preciso ler — não apenas a ele, mas a outros também. É o que ela diria a Leon — o seu gato — , e não a um homem empalhado, no elevador, que a olha do alto de sua condição de morador-burguês com o desdém típico que a sua condição lhe permite. Afinal, ela é apenas a concierge, nem mesmo é uma pessoa.
Ao chegar ao final do livro… sou outra, mas soluço ao pensar em Paloma que, compreende a si, aos outros, e percebe que até no nunca mais há qualquer coisa de beleza. As amizades sempre florescem no impossível.
Escolhi esse livro para esse outubro, porque precisava me ausentar dessa realidade tóxica, onde nos ensinam a não-ser. Fingimos sorrisos para as redes sociais. Disfarçamos a nossa miséria. Ensinamos aos outros o que não sabemos. Articulamos pensamentos baseados em nossas impressões particulares, sem base ou estudo. Apenas certezas falhas… e esbravejamos contra tudo e todos para sustentar um castelo de areia.
A elegância do ouriço escancara nossa limitação e rendição ao sistema e a visível condição de peça mínima de uma engrenagem enferrujada. Nunca antes, ser ignorante foi moda e, as pessoas não se sentiam confortáveis por exalar o odor do não saber, muito embora houvesse os que fingiam um saber-imperativo, que enganava apenas aos incautos. O bom é que em algum momento, as modas passam. Só é preciso esperar pela próxima tendência ou um novo aplicativo. Enquanto isso, resta ser como Renée e fingir ignorância para não se afogar nesse mar de olavos-jairs-eduardos-dorias e seus (in)fiéis seguidores.
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A Elegância do Ouriço — Muriel Barbery
Tradução: Rosa Freire d’Aguiar
Editora: Companhia das Letras
352 págs.
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