Grigor Samsa, o bode

Cresci em uma Vila italiana, com duas ruas e casas dos dois lados, devidamente numeradas. A nossa era a mais antiga. Uma sobrevivente, dizia o mio babinno. A primeira construção, situada na esquina, com seus contornos de pedras, quintais verdes, muros altos, degraus de cimento e caminhos de pedregulhos. As outras eram mais comuns e modernosas — feitas e refeitas inúmeras vezes…

Eu conhecia todas as criaturas que ali viviam… Na casa da frente, vivia uma família esquisita. A casa deles afundava-se no terreno, enterrando as muitas histórias estranhas que chegavam aos nossos ouvidos pela boca da outra vizinha — uma figura solitária, envelhecida e aborrecida que abria a janela da sala, antes da sete e fechava depois das oito horas noturnas. A criatura sabia a vida de todos e o que não sabia… inventava. Criou desavenças várias, em diversas casas. Com a nostra famiglia nunca mexeu… A donna não ousava enfrentar o meu olhar. Toda vez que esticava os olhos até ela, fechava a janela num movimento furioso. Pior que ela, era a dona Federica que gostava de arrastar as crianças das rua, pelas orelhas e gritava com a filha, o marido e todos que agissem fora de seus padrões cristãos. Viúva, dizia-se de boca em boca, que o marido morreu para se livrar da esposa.

A melhor das vizinhas era uma portuguesa… a cada dela tinha fama de assombrada. A mulher lusitana não gostava de pessoas, preferia os animais — cães e gatos que ela, e com quem conversava enquanto regava suas plantas, que cresciam desordenadas por todo o quintal.

Eu fiz amizade primeiro com os cães, que me apresentaram à Mulher que abriu o velho portão rabugento, convidando-me a entrar. Passamos a tomar chá com bolo nos finais de tarde, cercada por gatos, cães e algumas aves assanhadas, que não viviam soltos e não deixavam a casa.

Grigor Samsa foi resgatado após embate com o seu dono. O pobre bode era vítima de maus tratos. Tão indócil quanto a portuguesa, que tinha fama de Strega, graças a vizinha tagarela, que denunciou os dois aos órgãos responsáveis. Dois homens empalhados e uniformizados apareceram para verificar o quintal, e enquanto aventuravam-se pela selva, esqueceram o portão aberto.

Samsa escapou… mas não foi necessário procurar pelo bode na vizinhança. A vizinha chata e sua filha o trouxeram de volta. As duas apareceram em disparada pela rua, fugindo do bode que as perseguia pela rua. Faltou pouco para o bicho acertar os culi das duas, que quase pularam o portão de suas casas para escapar. Assistimos tudo da calçada, aos risos. A fúria de Grigor Samsa era tanta que ele dava violentas cabeçadas contra o portão e as duas usavam o próprio corpo e a alma para mantê-lo fechado, gritando rezas e implorando ajuda dos santos que, como nós, deveriam estar ocupados, gargalhando… tanto quanto a fofoqueira. Foi a única vez na minha infância que vi aquela mulher gargalhar de alegria. Mas, assim que reparou o meu olhar, fechou abruptamente a janela.

Era tarde demais…

6 on 6 | About

Passei os últimos dias pensando nessa postagem e não consegui elaborar mentalmente uma proposta que resultassem em seis fotografias. Pela manhã… rememorei o tempo dos álbuns e dos dias em que eram retirados das gavetas-caixas-baús, onde passavam boa parte dos dias. Era engraçado revisitas dias-semanas-meses convertidos em uma única fotografia.

É por isso que gosto tanto desse projeto fotográfico… Mas dessa vez foi difícil. About… vem do inglês e quer dizer “sobre você”. Eu usou uma pessoa simples, que gosta da gola da camiseta levantada e de almofadas no chão. De livros de poesias e a mesa do canto. De caminhadas pelo bairro, com as mãos enfiadas dentro do bolso da calça e os fones nos ouvidos. De caderno novo, lapiseria e de amassar folhas de papel onde o rascunho se orienta…

Pensnado tudo isso, resolvi vasculhar meus arquivos de fotos e escolhi seis… que dizem-me e talvez sirvam para esse álbum junino.

1 – …mulher. colecionadora de silêncios. artesã. degustadora de cafés, de realidades e de livros. nasci em Gênova — em 1981 — sob a regência de sagitário. me mudei para São Paulo duas décadas depois de meu nascimento. renasci por aqui, ao percorrer essas ruas labirínticas, onde encontro personagens e os enredos para as minhas narrativas.

2 – …adestradora de pretéritos e desafiadora de futuros: a direção na qual a ponta do grafite avança. Sei que os meus escritos são obras inacabadas e talvez nunca abandonem essa condição… Não gosto de ponto final e de vírgulas, tenho preferência por exclamações e reticências.

3 – Prefiro a noite, mas aprendi a amanhecer durante os últimos anos. Gosto imenso de dias de chuva, mas aprecio o dourado do sol nas faces dos prédios que se equilibram pela Alameda. Sou figura urbana, contraditória, que compartilha da loucura de Dionísio a quem reverencia em cada gole de nada.

4 – …escrevo-amasso-rabisco-reescrevo-rabisco-amasso-queimo-resmungo. Leio incontáveis vezes os mesmos trechos-páginas-bilhetes meus-alheios. Meu único compromisso é com os meus abismos… Vivo em constante queda… sem pouso. Sou inquieta e quieta. Sou avesso-verso, frase refeita incontáveis vezes.

5 – Eu estou sempre indo – sem bússolas ou mapas, porque eu gosto de sentir os caminhos. Perceber os atalhos – medir as distancias e traçar minha proposta de lugar-cidade… lugar nenhum.

6 – Eu sou essa pessoa antiga que sabe muito bem o que me move, mas nem por isso estou livre do susto, do espanto… Vivo indiganada com as coisas da realidade e sem me calo é para não ter que ralhar com figuras pantomimas que não pelos fios responsáveis por seus movimentos ventríloquoss.

Mariana GouveiaObdulio Nuñes OrtegaRoseli Pedroso

* Sou essa pessoa a quem o vento chama

E procuro minha alma
e o corpo, mesmo,
e a voz outrora
Em mim sentida. (…)

Cecília Meireles, pág. 97

A meia-noite… ficou para depois e o sono perdeu-se dos meus olhos, fui para o terraço espiar outros mundos que vão se diluindo no breu, misturando-se numa espécie de tela surrealista. A cidade, a essa hora, de fato se parece com uma cidade. Borges iria se divertir com esse falso-silêncio. Há um som de fundo que não consigo identificar. Todas as cidades que ocupei com o meu corpo exibem esse som que se esparrama por todas as direções. E a sensação é a mesma… o elemento urbano a pronunciar-se. Conforme as horas avançam, vão se perdendo as formas, as cores, os sons. As sombras se diluem e tudo ganha densidade…

Pensei em ler Cecília uma última vez… ao som de claire de la lune, antes do amanhecer. Eu gosto dessa hora para leituras de certos poemas-poetas. Amanhã o livro que guardo há tempos irá para outras mãos e pertencerá a outra-pessoa-que-não-eu a obsessão da poeta pelo mar e pela morte.

Li na semana que passou a carta última que ela escreveu ao amigo Mário de Andrade. Suas linhas foram tão definitivas: não há tempo bastante. Ela foi perfeita ao pontuar o fim de uma existência, sem lamentar, apenas enfatizar que sentiria falta do diálogo, da companhia dentro da noite — o seu momento de escrita. Gosto dessas premissas femininas em que tudo se revela… Antes eu ralhava contra porque havia um incômodo em minha anatomia, que transbordava nessas horas.

(…)
Sem terras nem estrelas brilha, presa
o meu sonho, invisível, à beleza
que és e não sabes, porque não me escutas…

Cecília Meireles, pág. 68

Ler Cecília é ler outro mundo-vida. Abrir a janela do corpo para uma manhã de sol e espiar realidades outras-muitas. É muito agradável ter outro ponto de vista dos mundos que a realidade despeja por aí. Cecília era figura noturna, como eu. Mas a sua escrita — ao contrário da minha — é solar. Ela abria a janela. Eu espio por entre frestas…

Creio que nós duas compartilhamos tristezas… E sei que dizer isso é incomodar as pessoas com suas ilusões de felicidade e alegria. O poeta escreveu-cantou é melhor ser alegre que ser triste e eu nunca me entendi com esse verso. O sorriso cresce e o corpo se agita como um mar-bravio… volto correndo para os versos de Cecília tenho fases como a lua …

Eu me lembro que na infância… as pessoas me consideravam uma pessoa triste e os esforços se multiplicavam na tentativa de me fazer sorrir, ser alegre. Era tão aborrecido. Eu considerava a tristeza uma coisa linda e isso não mudou. Penso que é preciso alma para se ser triste. A alegria é coisa do corpo! Passa por nós e vai embora da mesma maneira como chegou. Uma espécie de ventania. Não fica. É coisa para fora. Leite que derrama. Uma multidão a ocupar todos os espaços da rua. Um dia de sol, sem sombras onde escorar o corpo. Diálogos ininteligíveis Sapato novo…

A tristeza é o contrário. Se espalha e se transforma em outros elementos. Gruda na pele… é o melhor dos versos. Uma porção generosa de ar que percorre todos os caminhos do corpo. É uma manhã nublada; uma tarde de chuva… O olhar para dentro. Aquele abraço demorado em nós mesmos. Uma noite de inverno com taça de vinho, manta nos pés, filme antigo ou um livro novo! Um verso que se aconchega nos meus olhos e se esparrama…

“Neste mês, as cigarras cantam,
e os trovões caminham
por cima da terra agarrados ao sol

(…) Cecília Meireles – pág. 28

Que fazer em tão longas noites?

Bonne nuit, minha nobre, Sade,

…escrevo-te nesta noite de sábado, hora que passa, dia que se acaba. Estou cansada. A casa esvaziou-se há pouco. Outra festa… Comemoramos vinte e dois anos. Pode rir, ou melhor, gargalhar, como tanto gostas. 

Mas eu não sei de qual calendário saltaram tantos dias-semanas-meses. O homem que dorme ao meu lado é um estranho que ronca. Um homem tolo, que inventa desculpas diárias para chegar mais tarde. Pensa que não sei que visita outras camas. Poderia dizer apenas: não me espere acordada ou coisa parecida.

Vim para cá, esse meu refúgio, em busca de algum sossego. Beber uma última taça de vinho tinto… e escolher um livro, depois de tanto tempo sem virar páginas. Caminhei até a prateleira e fiquei ali, espiando a mulher que eu era. Os meus livros escondem segredos. Escolhi Aos teus pés que se ofereceram às minhas mãos. 

Foi um presente teu… e, entre as páginas encontrei o envelope azul escuro, com a tua caligrafia. O perfume noturno se espalhou pelo lugar e os teus olhos tão castanhos, tão dentro dos meus e a tua fala misteriosa provocou um abalo sísmico em meu corpo. 

Não pude evitar… abri a gaveta da minha mesa e puxei o bloco de papel, tão solitário quanto eu. No começo, a caligrafia oscilou. A mão desacostumada ao traço, reclamou. Amassei a primeira e a segunda folha. Nem bem sabia o que dizer-escrever e era tão simples…

Senti a tua falta! — admito… 

Mas foi o que combinamos: nos afastar… Eu cumpri a minha parte. Não tive mais notícias tuas. Nem mesmo sei se ainda vive ou se está por aí a vagabundear esquinas e a seduzir outras bocas-corpos-mentes. 

Você é uma luz que queimou e eu não troquei… olho para ela, no alto do teto e penso naquele filete rompido. As novas lâmpadas não têm esse efeito. 

Na última vez em que dividimos tudo… o lugar, o toque, o olhar — eu não fazia idéia de que era um ponto final em nossa história ou teria aproveitado mais. Você optou pelo silêncio. Não desconfiei. Estava tão feliz com o nosso jogo, a nossa cumplicidade.  Você deu-me tudo e nada… Partiu deixando uma trilha de migalhas para que eu pudesse iludir-me. Foi tão cruel! 

Deve ter se divertido com a minha dor ao imaginar o envelope em minhas mãos e a leitura tardia, depois do sono do senhor meu marido — era assim que o chamava, desdenhando dos meus papéis matrimoniais, dos quais nunca me mostrei disposta a rasgar. 

Eu ainda ouço a tua risada e vejo o teu rosto esfumaçado pela nicotina. Considerava-se tão sensual nessas horas. Tão senhora de si… caminhava riscando o chão com o salto agulha, deitando no ar as suas frases de efeito. O dorso da mão erguido a absorver com a ponta da língua, o sabor úmido e misto de terracota e ferritina. 

Você se lembra das nossas noites de livro? Eu lendo Crime e Castigo, em voz alta… entre uma página e outra, eu colhia suas reações. Criamos um mundo tão nosso, alheio a tudo…

Fico por aqui, a imaginar por onde andas, ma autre partenaire dans le crime. Eu adoro imaginá-la na condição de prisioneira. As mãos algemadas por um homem que se considera esperto, por tê-la encurralado e resolvido teus mistérios, enquanto você o vê como um tolo, reduzindo-o a um ponto preto no meio da parede, sem efeito. O teu riso torto não o atinge, mas não é disso que se trata. Ele saberia, não fosse a tolice comum aos homens. 

Ah, ma partenaire, quais crimes têm cometido sem mim?

Au revoir  

Das coisas que eu gosto (refiz a lista)

…casa com varanda. Jabuticabeira no fundo do quintal. Janelas abertas no fim da tarde. Sombras pela casa. Cortinas ao vento. Livros abertos. Xícaras de chá. Guarda-chuva vermelho. Filme antigo. Pilhas de livros e roupas no varal…

Os dias de maio, de junho mas, principalmente, os de novembro. Do outono. Abraços de urso. Sorrisos brancos e largos… Mãos dadas. Um bom dia canino. Xícara entre as mãos. Cheiro de café e de bolo no forno. De amanhecer chuvoso. Mãos aquecidas e enroscadas umas nas outras. O instante em que se precipita a história (aqui dentro). A conversa silenciosa com as idéias. O silêncio quando o outro fala. O cheiro dos livros recém-chegados… Folhas no chão, nas mãos, dentro dos livros. Margarida brancas no vaso. Hortênsias azuis nos canteiros…

Caminhar no final da tarde, depois da chuva… Arquiteturas equivocadas. Janelas abertas-fechadas. Calçadas irregulares. O estalar da pipoca nos carrinhos de ruas. O sino da Igreja nas manhãs de domingo. Humanos no meio do caminho. Desenhos de rostos e corpos. Apreciar o dia se apagar e a noite se aconchegar nos meus olhos. Admirar a lua e suas fases… Telhados vermelhos. Conversas alheias, frases soltas, inacabadas. Mesa no canto. Café entre esquinas. Lembranças. Álbum de fotografias. Baús de madeira cheirando a coisa guardada! Chaves perdidas. Envelopes coloridos… álbuns de fotografias.

Picar cebolas-tomates-alho-salsinha… Ouvir a chaleira apitar, a rolha saltar. Mesa pronta. Brindes. Olhares. Os cantos da casa… da cama, da alma… A noite inteira e a madrugada pela metade. A alma em repouso, junto ao corpo dele. O disco a girar na vitrola.

Meia noite — meia vida… meia hora, metade de mim… da laranja, do filme. Apenas metade… peças desse quebra-cabeças que sou. Jogo de xadrez-dama. As cartas vermelhas do baralho.

Ficar parada no mesmo lugar a observar pessoas… percebendo-as! Desenhando-as através das palavras… Sem traços ou retas, apenas metáforas. Poesias que são mapas, estradas, destino. Caderno novo. Frase iniciada. Primeiro gole de água, de chá-café.

Lá fora… a realidade.
Aqui dentro… o meu imaginário!

Mas e você, quais são as coisas que você gosta?

Um café, por favor!

Eram quase três… tarde quente. Fiz uma pausa nas leituras… para colocar a chaleira no fogo e voltei no tempo. Acontece com frequência — nem sei onde pouso… e se pouso.

Abri o armário em busca do pó (de café) e da cafeteira (uma prensa francesa) e enquanto esperava, recordei o nonno com sua canequinha de ágata-azul, em mãos. Sua figura cheia-imensa. Era um homenzarrão que bebia muito café ao longo das horas do dia. Ele parecia medir o tempo através das xícaras que bebericava. Sentava-se no canto do sofá e pronto… Os pés começavam a tamborilar. Alguém o socorria com uma xícara bem cheia — na maioria das vezes, ele era o seu próprio bombeiro. Tudo naquele corpanzil se acalmava e a ordem natural das coisas era restabelecida. A respiração, os batimentos cardíacos, o pensamento e a fala, que parecia recuperar o tom-certo.

Quando criança eu não entendia essa mania… não gostava do gosto forte-amargo do tal do Café. Mas, apreciava o aroma… que parecia nomear todas as coisas da casa — da cozinha aos quartos. Aprendi naqueles dias, enquanto o via preparar um bule de café… que um grão bem torrado permite o melhor dos aromas e é possível variar nas combinações, adicionando especiarias… Foram anos apreciando o gesto, sem repetí-lo e eu não tenho certeza do momento em que passei a apreciar o tal do Café — preciso investigar-me nesse sentido. Talvez até o final desse texto, eu reencontre a memória perdida, em meus filamentos.

Mio babo também bebia Café… era a primeira bebida do dia, antes do despertar, que parecia acontecer no exato instante em que levava a xícara à boca para o primeiro gole, considerado o melhor de todos, o que aguçava todos os sentidos do corpo-matéria, precipitando emoções e sensações. Antes disso… era apenas alguém à deriva.

Sentado à mesa… o café durava o tempo exato das notícias do dia-mundo-vida. Bolsa em alta. Novas diretrizes econômicas. A cotação das principais moedas — medidores do mundo dos homens e seus negócios sem rumo. Eu caçava palavras nas manchetes do jornal… como se fosse eu uma figura dadaísta. Fazia recortes imaginários… e escrevia no ar pequenas porções de serenidade. Enquanto ele levantava a xícara, levando a boca para mais um gole e outro e mais outro até se deparar com o vazio deixado pelo último gole — considerado o pior de todos. Um olhar rápido para o relógio, no pulso e a certeza de que o mundo lá de fora, o aguardava. Era preciso partir…

Me divertia secretamente com o mundo dele e, reparava que, vez ou outra, ao buscar pela xícara, para mais um gole do líquido escuro… espiava o meu crescimento e depois de uma piscadela, voltava a ser o homem do mundo dos outros, onde eu nunca tive lugar-espaço porque não era para mim. Nunca foi…

C., lia seus contos indianos nos fins de tarde… na companhia de uma generosa caneca de café. Ela gostava de misturar essências: gengibre em pó, lascas de canela ou de baunilha. O cheiro ficava agradável e provocativo. Mas eu ainda preferia o meu chá de folhas e flores do quintal…

O Café era um elemento que unia as pessoas da minha casa-famiglia… à mesa, no sofá da sala ou no chão — amontoados para um diálogo. Com ou sem livros em mãos… ou ao som dos metais de uma velha banda de rock, com o vinil a girar no vitrola. 

Cada um tomava a sua maneira: numa pequena xícara, num copo de vidro ou numa caneca… com ou sem leite-essências.  Um único ingrediente não era utilizado por ninguém: o açúcar.

Hoje, o Café embala as minhas leituras, escritos, diálogos e serve de pausa na realidade das coisas… e suas causas demasiadamente humanas. Descobri cenários e personagens… no intervalo dos goles, que desenha uma espécie de rastro-trilha, orientando os meus passos pela cidade. Dobro esquinas. Atravesso ruas… percorro alamedas-avenidas. Me equilibro no meio-fio. Subo e desço… vou em frente. Observo janelas no alto. Construções antigas-novas-esquisitas.. Esbarro em figuras imprecisas e peço um curto numa padaria.

Enquanto bebo meus pequenos goles, observo um jornal aberto nas mãos de um estranho… e repito o ritual da minha infância, caçando palavras que me fazem rir o ontem e o hoje devidamente misturado num único gole ligeiro. Mal percebo as notas do café… e parto para o próximo cenário-personagem.

Entre esquinas… passo pelo caixa e peço o meu expresso. Ocupo a mesma-mesa (do canto) e, enquanto espero, abro o notebook e começo a escrever, com a calma de quem sabe que o meu corpo-memória e a minha escrita… se orientam pelo aroma expresso… Afinal, vivo numa cidade em que tudo é rápido-passageiro, quase indigesto e para ontem. Menos o gole de Café que não tem hora certa, nem errada. Tem apenas o prazer de ser o elemento que une tudo e nada, na medida certa…

E, então? Pronto para o próximo gole?

Junho é o mês das tardes lilases

o Paulo, 01 de junho de 2023.

A você,

Amanheceu junho ali no terraço… bem cedo. O vento úmido e frio sussurrou o teu nome, pretendia te felicitar por tuas somas, mas ao vê-lo acomodado em sonhos, desistiu. Foi ventar em outros cantos… Mas, eu fiquei onde estava, a observar a realidade enquanto eu folheava as páginas de um velho álbum imaginário onde adormecem lembranças-nossas…

Você se lembra do homem que desceu a ladeira, vindo em minha direção? Enquanto caminhava, com as mãos guardadas nos bolsos, contando os vagarosos passos e exibindo um sorriso graúdo nos lábios eu viajava através dos meus mapas de vivências, em busca de um ponto. Tudo tão familiar… o jeito, o gesto…

Eu o sabia muito antes daquele encontro, mas não havia memória suficiente para sustentar a certeza que acalentava em minha epiderme. Procurei em toda a parte: ruas intrépidas, calçadas irregulares, esquinas várias, janelas muitas… Revisitei em poucos segundos todos os lugares onde estive… Nada! Insisti. Revirei todas as coisas minhas. Fiz do avesso o verso… e nada!

Guardei cada um dos traços em minha alma para quem sabe, mais tarde, fazer outro inventário. Durante dias, em silêncio – na solitudine de meus passos, passei tudo a limpo. No barulho das multidões. Nos cantos onde eu me escondia. Nos degraus onde eu me sentava…

Escrevi longas missivas para aquele homem em movimento, vindo em minha direção… que sem saber absolutamente nada de mim, chegou e se deixou ficar num abraço demorado. E eu que nunca tolerei o outro em mim, o recebi como se fosse um desses reencontros inusitados, coisas que a literatura sabe como narrar-inventar-viver…

Eu não sei se me perdi ou se me encontrei. Não sou boa com essas resoluções humanas. Sei que é o lugar para o qual me acostumei a voltar de tempos em tempos. E lá se vão vinte e um outonos, a sua soma é mais que o dobro. Sua história, sua vida vai muito além de nós dois, mas em algum momento deixa de ser tudo e passa a ser apenas…

Infelizmente eu não me lembro quando o amei pela primeira vez. Lembro de outras coisas. Nossos passos pelas ruas de um antigo bairro da cidade de São Paulo, sem pressa. Do cuidado em se posicionar do lado de fora da calçada e se antecipar ao outro que vem em minha direção. O poema lido em voz alta depois do livro aberto numa página qualquer. O envelope recebido e o olhar cheio. O jeito como você busca por ar quando algo toca muito além da superfície…

Quando menina, dentro dos dias de dezembro, dizia que queria adormecer e despertar dentro das tardes lilases de junho, como se eu soubesse que era para celebrar você, que chegou a esse mundo, antes de mim… E hoje, primeiro de junho: celebro o seu despertar… e gosto de imaginar os seus passos vindo em minha direção, consciente de que nada mais seria como antes…

bacio,

Sou feita de ausências

Fotografia feita com a luz da tarde de maio… com ventos a trazer nuvens e nada de trovão

É sempre no meu sempre aquele nunca
é sempre nesse nunca aquele agora
é sempre nesse agora aquele nada

no mesmo nada encontro sempre tudo
mesmo se o mundo é nada sempre assim
mesmo se assim tudo me desperta

e eu me desperto a adormecer no fim
de cada dia de trabalho errado
em cada hora de um amor mal feito

e digo mesmo se este mundo vale
a expectativa de querer ser sempre
aquela esp’rança onde o bem e o mal

se aliam sempre para quem conserva
o sonho ou a fúria de não estar sonhando
mas novamente dói a dor no peito

e dói no corpo o que nos vai passando
mágoas ou risos ou o grito dado
e logo atirado para um vale escuro

onde não oiçamos a revolta infinda
de vivermos os dias nesta escura selva
a que nem Dante chamou talvez de vida

a que chamamos coisa e porém amamos
sempre este querer de violência tanta
e esta crença de que o canto estale

e o dia venha porque nós lutamos
para além das forças que supomos nossas
para além dos sonhos que já não esperamos

para além do verso e do corpo gasto
sempre este homem que se vai cansando
sempre estes ossos em que equilibramos

esta carne frágil este dia vasto
esta vida feita no que é morte nela
este amor sujeito ao que é sempre efémero

este ódio ao mundo que é amor eterno

António Carlos Cortez, in
Resposta a Drummond, do livro Depois de dezembro

Depois de 30 posts escritos e publicados diariamente em Abril-passado, cumprindo o BEDA, precisei de um pouco de ausência. Não deixei de escrever-ler… Rascunhei uma coisa aqui e ali. E regresso ao livro Depois de dezembro… com seus versos que me carrega por aí… e eu me perco em janelas alheias… a espiar outra realidade-vida-mundo.

Gosto de me ausentar dos lugares, das pessoas… De fechar a porta sem a certeza da volta. Experimentar — de novo — do último gesto sem que se saiba se é adeus ou até breve.

É uma emoção antiga. Coisa da menina que eu fui… gostava daquele soluçar que sentia dentro, ao sair de casa para a viagem de trem que me levaria até a casa da nonna, durante o verão. Eu adorava aquelas viagens. Foi, sem dúvida, o melhor da minha infância — que foi repleta de coisas incríveis…

Sair de casa… com a mala pronta. Conferir as luzes da casa… a mobília. Eu me despedia do telhado vermelho, da vista marítima e da minha mesa. Agarrava o travesseiro e perguntava se poderia levá-lo comigo, consciente da negativa — verão após verão eu insistia, sem sucesso.

Publicar o último post de Abril devolveu essa emoção em particular. Gostei imenso de revisitar esse lugar a partir da necessidade de me ausentar daqui e ao ler o poema do poeta-antónio nesta segunda-feira, flutuei pelos meus lugares que me trouxeram de volta para cá.

6 ON 6 | Geometrias urbanas

Fui questionada a respeito do que eu pensava ao escolher o tema para maio — o mês das trovoadas… e sorri ao me recordar o discurso feito por Simone de Beauvoir que disse que as cidades são masculinas. Foram criadas pelo homem para o homem. Foi depois disso que passei a prestar atenção nos desenhos urbanos e a investigar a urbe a partir das categorias espaciais — circuito, trajeto, pedaço, mancha — durante o meu deslocamento pelas calçadas.

Tenho por hábito ir as ruas squando sinto vontade de escapar dos afazeres e ir lá para fora… andar calçadas. Pode ser pela manhã ou no final da tarde. De preferência, quando o sol não faz arder a paisagem a minha volta…

Começo pelo básico da geometria… o ponto e avanço para a linha que une aqui ao lá… passeando por edificações que emergem do chão em seus conceitos de forma antiga ou modernosa — inteferindo no espaço ou apenas se moldando a ele como se fosse um daqueles cubos mágicos que exigem movimentos precisos.

Escolho o que fotografar durante as minhas andanças ao tomar consciência do que hoje está ali e, amanhã não estão mais. Tenho particular simpatia por cenários que se submetem ao descaso do homem.

Tudo isso me faz um elemento que modifica o espaço é por ele é modificada.

1 – Torre da Biblioteca Mário de Andrade, no centro velho paulistano… pouco deois do meio dia. Olhei para cima e fiquei imaginando as muitas prateleiras repletas de exemplares raros e preciosos em cada um dos andares…

2 – Janela da Bilioteca Mário de Andrade — final de tarde, pouco depois das quatro… olhei para fora e me deparei com todos os elementos da urbe: uma sequencia de colunas, árvores, postes, grades e bancos… Tão grosseiramente modificado nos últimos anos com projetos de engenhos desastrosos.

3 – Casa pequena em Moema — pouco antes das dez de uma manhã em que o sol ficou pelo caminho. Descobri essa casinha teimosa de dois ou três andaras numa esquina. Cheia de placa de aluga-se e vende-se… o que vier primeiro. Tudo que eu gostaria de saber era como se deu a escolha para o local da janela.

4 – Quintal alheio… sai para caminhar com a Janedog e ao ver a flor escapar das grades, lembrei do quintal de Mariana, com seu pé de ypê. O meu quintal — disse a ela — é o meu bairro inteiro…

5 – Calçada da Avenida São Luis — quase cinco… é um dos traços mais simpáticos e charmosos do tão depreciado centro paulistano. Já foi mais arborizado… mas, caíram árvores durante o último verão e não foram repostas. A sensação que dá é que logo não háverá mais verde ali e será apenas mais um traço rude e cinza.

6 – Ruas de Moema… antes das nove. Um passeio com a Janedog e o olhar descobre pássaros, avião, postes e fios… Elementos urbanos comuns a Paulicéia que só foi desvairada na poesia do homem-poeta-mario e quem fez pensar na proposta do antropólogo J.G.C.Magnani: analisar a urbe, sem qualquer pretensão científica, apenas percepção da presença de elementos geométricos no nosso uso da cidade para nos ajudar a entendê-la melhor e, vivê-la de maneira mais consciente.

Mariana Gouveia – Obdulio Nuñes Ortega – Roseli Pedroso – Suzana Martins

BEDA | uma receita para Abril

E abril chega ao seu último dia. Não foi o mais cruel dos meses, como escreveu Eliot. Mas admito: não foram dias fácies. Corri para todos os lados. Dei pulos e alguns saltos ornamentais. Fiz pão-bolo. Retomei a feitura das omeletes e revisei Catarina — no ritmo do cuore. Escrevi missivas aos poemas mulher ilustrada, de Maria Sousa. Decepção à regra, de João Luis Barreto Guimarães. Metamorfoses, de Ana Luisa Amaral e Triptico, de Herberto Heldere tive o prazer da companhia de autoras famintas e contemporâneas. Escrevi diariamente, ao vento, para mim e para os outros…

Não foi o meu primeiro BEDA, mas foi um dos que mais gostei de participar. Não teve planejamento algum. E houve dias em que, por pouco, não fui capaz de cumprir a rotina. Li posts que me fizeram sorrir e outros que me fizeram bufar. Precisei de calma para reagir. Ouvir de novo aquela voz interior dizer de novo e de novo até surtir efeito: respira. E se antes era causa de fúria… hoje é motivo de riso solto.

Algumas coisas mudaram em mim, neste Abril. Outras permanecem as mesmas e duvido que mudem em algum momento. Conclui outro projeto artesanal. Mas há vários na fila para serem planejados. Maio que me ajude e seja mais vagaroso, porque Abril estava com pressa. E o artesanal é como eu: meio rebelde e só floresce na sua primavera.

Para fechar Abril… fui convidada a fazer uma receita de pães na casa em que sou visita. Coisa estranha. Os olhares atentos da dona da casa, que servia o chá, me desconcertou. A cozinha e a receita não eram minhas. Ao menos, os ingredientes eu trouxe… fui recolhendo pelo caminho. Há lugares que não nos oferecem o necessário para uma boa receita… que começa com um sorriso de quem nos vende. O Armazém do seu Elias — figura simpática que apontou o melhor trigo para fazer pães e auxiliou em outros ingredientes. Acabei contraíndo uma dívida: um dos pães…

Desejo que o Abril de vocês tenha sido inspirador.
Nos vemos em Maio?

Abril [entre tantas coisas] foi o mês do B.E.B.A
e eu tive companhia nessa aventura diária
 

Alê HelgaBrendaClaudia LeonardiLucas – Mariana Gouveia
Obdulio Nuñes Ortega – Roseli Pedroso – Suzana Martins