* E vou escrever esta história para provar que sou sublime.

Estou neste quarto-sonho, que tem o piso solto e que range em resposta ao meu passo. É m cômodo com cantos vazios. Uma velha ama desfeita, com o colchão de molas, uma cadeira de rodas, uma mesa de apoio, cheia de medicamentos, o penico e uma cadeira vazia, que era ocupada pela acompanhante. Do outro lado o tubo de oxigênio e o frasco de soro-vazio esquecido no suporte.

O lugar cheira a morte…
Ainda há o rastro de um corpo
em seus últimos instantes
de vida

A veneziana fechada impede a luz do dia de entrar. Procuro pelo interruptor e encontrou a lâmpada solta do bocal. Num giro rápida ela se acende, sem iluminar muita coisa. O suficiente para enxergar as roupas esquecidas nas costas da cadeira, o chinelo velho em cima do tapete e o terço em cima do travesseiro.  Um porta-retrato com a foto do casal que viveu ali por mais de cinquenta anos. A imagem de um Santo — que alguém diz ser o tal do Antônio — e o que restou da vela acesa no dia anterior. O rosário com as contas gastar de tanto passar de dedo em dedo nas rezas noturnas, feitas antes de dormir. Uma bíblia aberta ao lado de um escapulário…

Após meticulosa inspeção,
meia dúzia de figuras curiosas deixam o lugar. Nada há de interesse
no cômodo escuro.

Reparo que a pequena estante está trancada. A chave está escondida no mesmo lugar. Passo a mão e além de toda a poeira acumulada dos últimos anos, encontro a miniatura de metal, meio torta.

Os livros estão em péssimo estado…
Poemas de Walt Whitman, Auden
e Caeiro — o favorito do dono do quarto.
Puxo um exemplar e a capa se desfaz
ao meu toque. Espirro pela primeira vez…

Tento folheá-lo, mas é impossível… A costura não segura mais as páginas que se dissolvem no ar. Areia a escoar pelos meus vãos. Fico quieta-imóvel e sou trazida de volta pela mulher com pernas de aço. Trocamos olhares e ela parece saber o que sinto.

Avisa que irá buscar a vassoura, uma pá. Mas eu não quero que ela
faça movimentos desnecessários. Ela reage-ruge… Não precisa que
alguém sinta pena de sua condição…
Respiro fundo e tento lidar com o que é sentimento
em meu íntimo. Espirro pela segunda vez…

Puxo outro exemplar… e outro e mais outro. Todos devorados por traças. Lamento o descaso! Puxo mais um e me deparo com uma preciosidade… Álvaro de Campos — foi um presente meu para ele… Trocamos silêncios quando o coloquei em suas mãos enrugadas, trêmulas… Ele virou as páginas com alguma dificuldade e parou. Irritado com o tremor que lhe roubava o humor. Leu para nós dois… os poderosos versos do poeta português.
Tabacaria.

A mulher de pernas de aço pede que eu leia para ela. Com a voz embargada
e os olhos cheios, eu tento… Soluço os versos. A minha voz e a do homem 
misturam-se entre tempos — em ecos. Somos uma mesma matéria…
Eu feita de vida e ele de morte.

O livro — estranhamente preservado — em meio a tantos outros carcomidos vai para o meu bolso. No outro cômodo… os herdeiros brigam por causa de outras coisas. Penso em perguntar se posso ficar com o exemplar. Desisto quando ouço os desaforos crispados uns contra os outros.

A mulher de pernas de aço liga a velha sonata, coloca o vinil favorito do homem para girar e se emociona. Era a música favorita dele… Tango de Gardel: quando os parentes brigarem por causa da esmola que tu vais deixar. Espirro mais uma vez…

Puxo lá do fundo… um pequeno livreto, de capa artesanal, amarrado
com barbante cozido. Puxo com cuidado. Para a minha surpresa…
às traças não o quiseram. O cuore dá um pulo dentro do peito… Reconheço
a caligrafia infantil que tecem versos de Emily Dickinson confeccionado
por mim — para ele. Um presente pelos oitenta anos, completados um dia antes
de mim. O que o fazia dizer que havia chegado a esse mundo primeiro.
No livreto… há um poema para cada ano de vida do velho homem!

A mulher com suas pernas sustentadas por uma estrutura de aço… se aproxima e sorri. Estica as mãos e eu entrego o tesouro. Ela ainda tem alguma dificuldade em ler. Gagueja entre uma ou outra palavra. Não entende um verso ou outro e eu tento ajudá-la. De repente… um verso inteiro brota de sua boca…

Quer saber se pode ficar com o livreto — e o presente se reinventa,
migrando para outras mãos. Pouca coisa ali me interessa. Pergunto se posso ficar
com a gravata vermelha e ela se apressa, colocando-a em meu pescoço — arrumando o nó. Numa caixa, ela se apressa em colocar a velha sonata e os discos. Pede que eu vá embora. E na porta, pede desculpas por não conseguir salvar o carrilhão. Eu espirro de novo…

O relojoeiro da cidade sempre cobiçou o bichano indócil. Fez inúmeras propostas — nunca aceitas. Agora estava preso na parede da sala da cada o homem baixinho com nome e sobrenome trocado-inventado para sobreviver ao horror. 

Passei por lá e parei na porta do lugar — uma loja-oficina de relógios. Não consegui entrar. Ele me viu e veio ao meu encontro. Não estava disposto a ouvir uma oferta. Queria saber qual era o segredo do carrilhão. Ainda não o tinha feito cantar. Os ponteiros seguiam parados, dizendo a última hora do velho homem entre nós.

Apontei para o cuore e fui embora sem saber se ele
tinha entendido ou não…

24 | * Falar do que é teu, não posso 

* verso extraído do livro
Estratosférica, de Lua Souza

O dia se manteve desguarnecido com seus tons amenos se precipitando por toda a paisagem. As cores são mais quentes em dias frios… nos dias de sol tudo arde e se precipita de maneira indócil. Fica difícil admirar a paisagem que se transforma em qualquer coisa agressiva, banhada de luz quente…

Dei pelos meus passos pelas calçadas… disputando espaço com a intranquilidade de certos humanos em movimentos de ida. Acho curioso reparar que algumas pessoas estão sempre indo… ainda que não saibam para onde. Eu interrompo o meu caminhar e cedo passagem porque não quero mudar o ritmo dos meus passos. 

Com um sorriso natural nos lábios e as mãos aquecidas — escondidas nos bolsos da calça — dobrei a esquina e atravessei a rua seguinte. De repente lá estava ele: mio babo a encaixar o passo ao meu. É tão singular ser surpreendida com qualquer coisa minha que resida na ausência.

Eu sempre agradeço ao meu imaginário por certas gentilezas…  essa virar de páginas, onde fotografias estão coladas e eu posso revisitar certos momentos, ao gosto de Kairós. 

Herdei de mio babo a mania de deter as mãos dentro do bolso da calça… um gesto tão intrigante e gostoso que de tanto espiar, passei a repetí-lo, como se fosse coisa minha.

Toda vez que comprava calças, escolhia as que tinham bolsos. C nunca me perguntou a razão da preferência. Apenas exibia seu melhor sorriso quando eu reclamava: “mas essa não tem bolsos” – como se fosse um discurso conhecido, repetido de maneira natural, por outra pessoa que não eu.

Ainda hoje repito os gestos e todas as minhas calças têm bolsos… Caso contrário, não saberei o que fazer com as mãos. Sinto-me incapaz de realizar um simples movimento. Me desorganizo por inteira. Desaprendo a andar e não faço idéia para onde devo ir… começo a tropeçar, não sei o que é caminho-passo-lugar.

Certa vez, seguíamos os dois pelas calçadas da cidade… ele do lado de fora, em seu gesto masculino-antigo quando ele deu pelo meu movimento igual. Nós dois – lado a lado – com as mãos aquecidas dentro do bolso, o passo largo e o olhar ao longe… Alheios e perdidos em pensamentos comuns.

Trocamos olhares-sorrisos. Encaixamos os nossos… enroscamos nossas presenças, amarrando nossa realidade numa espécie de abraço pela metade. Ele parecia feliz por reconhecer qualquer coisa sua em mim… E eu me sinto feliz por caminhar pelas ruas do bairro, encaixando o ontem ao hoje, combinando o que sou-somos. 

Nesse novembro [entre outras coisas] vamos de #blogvember…
Aventuram-se em linhas diárias: Mariana Gouveia e Obdulio Nuñes Ortega