Não estamos em Gilead…

Começo esse texto pelo fim, lembrando a todos que, embora não pareça, estamos no século XXI… e não há fogueiras acesas e mulheres acusadas de bruxaria por tratar umas às outras com ervas, emplastos e outros métodos caseiros, evitando o horror propagado por uma geração de médicos que submetiam as mulheres a tratamentos absurdos. Esses senhores seguiam o pensamento aristotélico que pregava que o útero era um simples receptáculo e que a “alma” era inflada pelo sêmen masculino. Versavam ainda que a mulher estava mais inclinada às “tentações diabólicas” e, portanto, eram merecedoras de castigos divinos.

Os homens do Brasil parecem pertencer à essa época. Ainda criam leis para gerir o corpo da mulher, punindo-a por ter um útero. Alegam proteção à vida, ao pobre feto — que perde o valor quando um homem engravida a amante e corre para reparar o erro, cometido por ela… ou vai embora, abandonando mulher e crianças.

Não deve ser fácil para esses senhores assistir a revolução das mulheres, iniciada há pouco tempo. Em cem anos, foram muitas as conquistas e seguidas derrotas — nada que desanimasse. Bastava uma dar o primeiro passo, para serem seguidas por outras. Mas o caminho percorrido até aqui não foi longo e óbvio que se esperava reação por parte de uns e outros. Sabia-se que seria violenta-agressiva. Não se pode esperar nada diferente dos selvagens. Infelizmente, conseguiram arregimentar (não é novidade) algumas damas… que se erguem em defesa da masculinidade (frágil) desses senhores, na tentativa de impedir as mudanças.

Tomo muito cuidado cada vez que uma Mulher ergue a voz para questionar o comportamento da outra. Faço questão de lembrar que são séculos de opressão. Ninguém se liberta tão facilmente das teorias avós que bebeu — minha frase favorita. Não é fácil se libertar do machismo de uma sociedade feita por homens para homens. Replicar o que está à nossa volta, é natural. Cabe a nós, iluminar pontos escuros e trazê-las à luz…

Outro dia, ouvi de uma senhora dizer que sou contra as feministas e esbravejou seus motivos. Não irei listá-los aqui porque todas nós, mulheres, sabemos de cor. Respirei fundo e aguardei que finalizasse. Disse, sem titubear, que ela estava equivocada quanto ao pensamento de nós, mulheres feministas. Se ela quer ser dona de casa, é um direito dela e iremos defender isso todos os dias. Mas não aceitamos que ela queira impor isso como regra a outras-mulheres que não querem ter filhos e tem outros planos-projetos de vida. Ela não desistiu de seu argumento. Lembrou do lugar da mulher na sociedade, ao lado dos homens, que são seres pensantes, lógicos e imaginosos. E que para trilhar seus caminhos, precisam de uma boa parceira. Eu não sei quem a adestrou dessa maneira…

Sou filha de um casal que eram parceiros um do outro e que alcançaram o sucesso, cada um em sua profissão. Apoiavam-se e tomavam decisões de vida. Sou neta de uma mulher que foi a primeira de sua família a ir para a Universidade, sendo a única numa turma de homens, que se incomodavam com sua presença e tentavam de todas as formas desestimulá-la. Havia, no entanto, alguns que se sentiam satisfeitos com sua presença e foram gentis e humanos. Mio nonno era um homem da lida… com a terra, com as plantas e com os animais. Antes de consultar a ciência, recorria a nonna e as suas “feitiçarias”. Todos nós, na famiglia, fomos tratados por ela e aprendemos as fases da lua, as estações do ano e as ervas certas para certas doenças do corpo.

Sou parte de uma famiglia que respeita as mulheres e tive “sorte” de encontrar homens que foram gentis e humanos comigo. O que não impediu que o machismo atingisse a mim. Durante muito tempo, preferi trabalhar com homens e fiz parte do côro que rotulava as mulheres. Devo ter apontado dedo, questionado roupas, comportamento e enxergado nelas uma concorrente, mesmo não estando nos meus planos casar e ter filhos.

Eu sou fruto do meio, como toda mulher. E não é nada fácil escapar de todas as armadilhas. Acordei desse pesadelo ao ler Virginia Woolf e começar a questionar o meu lugar. Assumi novo pensamento-comportamento e não tenho dificuldade alguma em gritar contra esses senhores frágeis que desconhecem a própria masculinidade e se comportam como selvagens, abrindo mão da própria evolução, apenas para se sentirem confortáveis e terem a liberdade de serem figuras arcaicas e impróprias num mundo em constante mudança e movimento.

Sei que os números da violência contra a mulher (em qualquer idade) assusta. Mas é muito melhor que o silêncio de ontem, quando as fogueiras eram erguidas na força do punho cerrado, do grito, do sexo sem permissão ou de comentários precários que depreciavam o corpo, diminuiam o intelecto e prejudicava o emocional.

Não foi uma semana fácil para as mulheres do Brasil, mas não foi a pior de nossas vidas. Ouvi mulheres gritar contra esses selvagens invejosos, que sabem que não tem mais lugar numa sociedade em que somos maioria. Ou mudam ou terão que se organizar em bandos, obrigados a viver em suas cavernas. E ninguém duvide de que serão ainda mais violentos porque essa é a única linguagem que conhecem. Afinal, estão convencidos de que são fortes e, nós mulheres, fracas… o tal sexo-frágil, que eles inventaram para se convencer de que são o Adão de Deus…

4 respostas para ‘Não estamos em Gilead…

  1. Adriana Aneli

    Os acontecimentos desta semana e alguns outros, demonstram que a maioria dos homens insiste em não reconhecer os privilégios herdados socialmente pela brutalidade do patriarcado. Pior, insistem em negar o sofrimento causado pela cultura machista.

  2. Roseli Pedroso

    Lunna, li seu texto sem parar para respirar. A semana foi tensa. Não está fácil

    engolir todas esses absurdos que já deviam de estar enterrado lá no passado.

    Que tempos estamos vivendo cara mia! Está difícil respirar e a culpa não é somente do ar seco e poluído de Sampa. Triste ver tudo acontecendo dessa forma. Força e coragem para todas nós!

  3. dulcedelgado

    Estranho o que se está a passar no Brasil relativamente aos direitos das mulheres. Retrocessos nunca se desejam. Talvez não passem nos orgãos seguintes..
    Textos como este são importantes, agora bem mais do que nunca!

Se tem algo a dizer, fale agora... hahahahaha