Sobre a minha escrita

Final de tarde por aqui e um monte de notas esparramadas em cima da mesa — material para ser usado amanhã, numa oficina literária na Biblioteca Viriato Correa, aqui em São Paulo. Respiro fundo para conter a ansiedade que começa a galopar pelo meu corpo. Evito o café… opto por pequenos goles de água. E ao acalmar meus ânimos “ouço” Borges dizendo numa entrevista, gosto muito de dar aulas porque quando ensino, aprendo… e fui, aos poucos, repassando paisagens minhas.

Fazia um ano e seis meses que eu estava em São Paulo quando comecei a perceber que tinha me acostumado aos caminhos do bairro em que vivia. Acordava nos mesmos horários e saia para os lugares de todos os dias… Observava as mesmas janelas durante o trajeto e experimentava as mesmas emoções. Ocupava a mesa perto da porta de uma simpática padaria, que parecia saber de mim o suficiente.

Percebi — para o meu desconforto — que não havia produzido nada. Tinha um monte de rascunhos, esparramados por cima da mesa e manchados com café, em meio a um gesto rude — que misturava… raiva, horror, pessimismo e frustração. Vontade de amassar-rasgar-queimar todos aqueles papéis — me livrar da bagagem cheia de nada.

Tinha experimentado de tudo desde a minha chegada. Mas estava com as mãos vazias. Meia dúzia de vogais e consoantes seguidas por vírgulas, pontos, reticências e exclamações. Percebi que muito do que havia escrito, esbarrava diretamente nas teorias lacanianas, o que me fez sentir como se a decisão de abandonar a vida anterior, não tivesse ocorrido.

Apenas tinha atravessado o oceano, mudado de país e, no mais, tudo continuava como antes. Um belo soco na boca do estômago.

Eu havia escrito um conto-ruim, uma ou outra crônica-terrível e uma dúzia de artigos a respeito do comportamento humano, as desculpas da mente, entre outras coisas mais. E quanto ao esboço do romance? Não aconteceu. Não tinha uma única nota a respeito.

A decisão considerada como certa — meses antes — estava no limbo. E eu comecei a acreditar que em algum momento, estaria entrando em contato com órgãos responsáveis para legitimar os meus diplomas e retomar a atividade abandonada. Respirei fundo… e ao fazê-lo, veio a luz… as sábias palavras ditas por C — é preciso saber a hora de pedir ajuda e reconhecer que não dá para seguir sozinho.

A maioria das pessoas tendem a acreditar que escrever é um ato solitário. E estão certas… até certo ponto. Existem muitos exemplos de pessoas fechadas em seus aposentos, em conchas. Quando se escreve… é apenas você, o papel-tela e tudo que seu corpo tem para disponibilizar no momento em que o texto começa a ganhar vida. Mas, existem muitas coisas que precisamos considerar…

Pesquisei cursos-oficinas e me inscrevi em vários. Comecei a frequentar uma oficina de prática poética, na Biblioteca Mário de Andrade, nas noites de quinta. Não pretendia escrever poesias. Fui até lá, na condição de leitora de versos,

Após o curso que não me empolgou… movida por qualquer coisa de curiosidade, subi as escadas de pedra da Biblioteca e acabei na sala de T — uma estranha figura humana responsável pela programação cultural da Biblioteca. Ele se parecia com um dos personagens de Woody Allen — estranho, simpático e alucinado. Um apaixonado pelo dia de los muertos — um festival mexicano…

T mostrou-se empolgado com a minha presença e pediu para ler algo que eu tinha escrito. Morri! E enquanto voltava do mundo dos mortos, feito Fênix, tentava saber quantas vidas ainda restavam. Fui sincera. Eu não tinha o que mostrar. Havia descartado dezoito meses de escritos sem futuro. Ele sorriu e me convidou para um café, na lanchonete da esquina…

Depois do segundo gole, disse que eu fui uma tola — descartar um texto, por considerá-lo ruim é muito fácil, menina. Difícil é conseguir transformá-lo em um bom texto. Não me arrependi do meu gesto, mas não voltei a rasgar-queimar papéis. Às vezes, eu os amasso, mas pelo prazer de vê-los se deformar em minhas mãos quando alcanço a satisfação de ter escrito um bom texto…

Por que eu escrevo (?)

Não tenho por hábito pensar nas razões que me levam a escrever. Mas é uma curiosidade que ocasionalmente bate à porta do meu corpo. Perguntam-me, quando participo de alguma atividade literária ou quando se sentam à mesa comigo: por que você escreve? Foi o que aconteceu no final de semana quando participei de um encontro de mulheres. Fui convidada para falar da minha área de atuação. Acusei um forte solavanco no corpo. Tudo estremeceu. O dia fechou e trovões explodiram em meu íntimo…

Respirei fundo e disse de uma vez…

Quero guardar os melhores momentos, preservar certas paisagens e não deixar se perder algumas muitas histórias das quais fiz parte… de alguma maneira. Quero dizer que estou bem, onde estou e para onde vou, o que faço, penso, de que sinto falta ou porque não dei notícias na semana que passou.

E tem a consequência que é preciso considerar, mas que a maioria opta por ignorar…

A escrita é qualquer coisa egoísta porque quer ser lida. O eu que escreve quer ser ouvido, mesmo sabendo que o outro que lê, não sente, não vive o que foi escrito. O que experimentam é de outra ordem…

Estranhamente isso basta para quem escreve porque cumpriu com certas promessas feitas no templo sagrado da infância quando fui questionada: o que quer ser quando crescer?

* E vou escrever esta história para provar que sou sublime.

Estou neste quarto-sonho, que tem o piso solto e que range em resposta ao meu passo. É m cômodo com cantos vazios. Uma velha ama desfeita, com o colchão de molas, uma cadeira de rodas, uma mesa de apoio, cheia de medicamentos, o penico e uma cadeira vazia, que era ocupada pela acompanhante. Do outro lado o tubo de oxigênio e o frasco de soro-vazio esquecido no suporte.

O lugar cheira a morte…
Ainda há o rastro de um corpo
em seus últimos instantes
de vida

A veneziana fechada impede a luz do dia de entrar. Procuro pelo interruptor e encontrou a lâmpada solta do bocal. Num giro rápida ela se acende, sem iluminar muita coisa. O suficiente para enxergar as roupas esquecidas nas costas da cadeira, o chinelo velho em cima do tapete e o terço em cima do travesseiro.  Um porta-retrato com a foto do casal que viveu ali por mais de cinquenta anos. A imagem de um Santo — que alguém diz ser o tal do Antônio — e o que restou da vela acesa no dia anterior. O rosário com as contas gastar de tanto passar de dedo em dedo nas rezas noturnas, feitas antes de dormir. Uma bíblia aberta ao lado de um escapulário…

Após meticulosa inspeção,
meia dúzia de figuras curiosas deixam o lugar. Nada há de interesse
no cômodo escuro.

Reparo que a pequena estante está trancada. A chave está escondida no mesmo lugar. Passo a mão e além de toda a poeira acumulada dos últimos anos, encontro a miniatura de metal, meio torta.

Os livros estão em péssimo estado…
Poemas de Walt Whitman, Auden
e Caeiro — o favorito do dono do quarto.
Puxo um exemplar e a capa se desfaz
ao meu toque. Espirro pela primeira vez…

Tento folheá-lo, mas é impossível… A costura não segura mais as páginas que se dissolvem no ar. Areia a escoar pelos meus vãos. Fico quieta-imóvel e sou trazida de volta pela mulher com pernas de aço. Trocamos olhares e ela parece saber o que sinto.

Avisa que irá buscar a vassoura, uma pá. Mas eu não quero que ela
faça movimentos desnecessários. Ela reage-ruge… Não precisa que
alguém sinta pena de sua condição…
Respiro fundo e tento lidar com o que é sentimento
em meu íntimo. Espirro pela segunda vez…

Puxo outro exemplar… e outro e mais outro. Todos devorados por traças. Lamento o descaso! Puxo mais um e me deparo com uma preciosidade… Álvaro de Campos — foi um presente meu para ele… Trocamos silêncios quando o coloquei em suas mãos enrugadas, trêmulas… Ele virou as páginas com alguma dificuldade e parou. Irritado com o tremor que lhe roubava o humor. Leu para nós dois… os poderosos versos do poeta português.
Tabacaria.

A mulher de pernas de aço pede que eu leia para ela. Com a voz embargada
e os olhos cheios, eu tento… Soluço os versos. A minha voz e a do homem 
misturam-se entre tempos — em ecos. Somos uma mesma matéria…
Eu feita de vida e ele de morte.

O livro — estranhamente preservado — em meio a tantos outros carcomidos vai para o meu bolso. No outro cômodo… os herdeiros brigam por causa de outras coisas. Penso em perguntar se posso ficar com o exemplar. Desisto quando ouço os desaforos crispados uns contra os outros.

A mulher de pernas de aço liga a velha sonata, coloca o vinil favorito do homem para girar e se emociona. Era a música favorita dele… Tango de Gardel: quando os parentes brigarem por causa da esmola que tu vais deixar. Espirro mais uma vez…

Puxo lá do fundo… um pequeno livreto, de capa artesanal, amarrado
com barbante cozido. Puxo com cuidado. Para a minha surpresa…
às traças não o quiseram. O cuore dá um pulo dentro do peito… Reconheço
a caligrafia infantil que tecem versos de Emily Dickinson confeccionado
por mim — para ele. Um presente pelos oitenta anos, completados um dia antes
de mim. O que o fazia dizer que havia chegado a esse mundo primeiro.
No livreto… há um poema para cada ano de vida do velho homem!

A mulher com suas pernas sustentadas por uma estrutura de aço… se aproxima e sorri. Estica as mãos e eu entrego o tesouro. Ela ainda tem alguma dificuldade em ler. Gagueja entre uma ou outra palavra. Não entende um verso ou outro e eu tento ajudá-la. De repente… um verso inteiro brota de sua boca…

Quer saber se pode ficar com o livreto — e o presente se reinventa,
migrando para outras mãos. Pouca coisa ali me interessa. Pergunto se posso ficar
com a gravata vermelha e ela se apressa, colocando-a em meu pescoço — arrumando o nó. Numa caixa, ela se apressa em colocar a velha sonata e os discos. Pede que eu vá embora. E na porta, pede desculpas por não conseguir salvar o carrilhão. Eu espirro de novo…

O relojoeiro da cidade sempre cobiçou o bichano indócil. Fez inúmeras propostas — nunca aceitas. Agora estava preso na parede da sala da cada o homem baixinho com nome e sobrenome trocado-inventado para sobreviver ao horror. 

Passei por lá e parei na porta do lugar — uma loja-oficina de relógios. Não consegui entrar. Ele me viu e veio ao meu encontro. Não estava disposto a ouvir uma oferta. Queria saber qual era o segredo do carrilhão. Ainda não o tinha feito cantar. Os ponteiros seguiam parados, dizendo a última hora do velho homem entre nós.

Apontei para o cuore e fui embora sem saber se ele
tinha entendido ou não…

Uma vida em palavras!

Ao observar a paisagem urbana que a cidade despeja na minha varanda, ouvi a voz de Mariana, lendo um texto antigo. Não me lembrava de tê-lo escrito. Acabei tragada para um desses ontens que a memória guarda…

Fechei os olhos e recordei a primeira vez que me sentei para escrever uma história. Eu tinha poucos anos e muito atrevimento para o meu tamanho. Estava em sala de aula… Diante de um caderno com muitas páginas em branco — nunca usadas porque a professora era apegada ao livro.

Senti uma coceira na ponta dos dedos e uma vontade enorme de escrever uma coisa-minha ali naquelas linhas. Contar uma história. Uma aventura qualquer. Depois de lançar um olhar pela sala, observando o meu mundo — recorri a madame Woolf e deixei o grafite correr ligeiro pelas linhas — sem compromisso algum com regras literárias. Escrevi por escrever somente — uma história do meu tamanho, enquanto tive linhas-páginas.

Não pensei em leitores-livros-livrarias-prateleiras — nada. Apenas na história que eu queria narrar-contar.

Aos poucos — fui migrando para um mundo próprio-particular. Alheia à realidade. Escrevi a partir das minhas fronteiras — a escola serviu como cenário… e os personagens eram alunos, professores e todas as pessoas com quem eu convivia.

Foi uma experiência curiosa! Minha única leitura durante dias-semanas… quase um mês inteiro. Escrevia durante as aulas e lia — linha por linha, palavra por palavra — sentada no telhado de casa.

Mais que escrever, eu gostava imenso de ouvir o som das folhas do caderno em movimento… e da minha própria voz a pontuar a narrativa.

Ao passear por essas lembranças, dentro desse final de tarde, em que busco um caminho para Abril, percebi que não desisti da escrita… mesmo indo na direção oposta da literatura. Seguia prestando atenção nos restos de conversas alheias. Observando cenas nos lugares por onde passava.

As narrativas aconteciam — dentro do meu silêncio. Escrevi muitas histórias no ar, dando continuidade as coisas que a realidade entregava a mim, como se soubesse que eu daria um destino melhor a elas…

Os processos da escrita eram voluntariosos. Ofereciam-se à minha matéria que gostava de experimentar outras vidas-mundos-realidades. Uma espécie de universo paralelo com cenário-personagens e histórias. Roteiros inteiros. Cenas de filmes… de Allen a Hughes.

Quando eu me sentava à mesa dos meus cafés favoritos, observava marcações, percebia ensaios e me antecipava aos diálogos, como se estivesse a escrevê-los ali mesmo, naquela fração de minuto.

Quando olho para trás, estou sempre a escrever — a riscar o papel nos mais diversos e inusitados lugares e me vejo obrigada a concordar com a dama da minha infância. 

Não perdi o hábito de escrever diários

Três coisas aconteceram quando eu tinha 21 anos

Cheguei à casa pouco depois das seis. Exausta e com o corpo dolorido. A mente praticava saltos ornamentais—gigantescas piruetas para a qual não foi treinada. Reprisava os meus últimos minutos de vida, tal qual um prisioneiro que tem sentença de morte anunciada e a data da injeção letal comunicada. Serviram-me a minha última refeição, que não desceu. Mandaram chamar um padre. Eu ri da minha falta de fé e disse em voz alta — para ouvir o disparate — eu vou escrever um romance. A minha vida anterior agonizava. Alguém anunciou a hora do óbito. O meu corpo tombou no sofá. Morri… Acordei com o volume alto da televisão a gritar o horror dos homens em algum lugar do mundo. Embriagada de morte… procurei pelo controle remoto como quem tateia no escuro e desliguei o filme-série. Tantos anos depois ainda tento explicar às pessoas o que eu fazia no 11 de setembro… sem que alguém consiga compreender.

Eu troquei de mundo-vida-país no verão seguinte… Era agosto. A cidade estava fria-cinza e colorida por uma gente apressada, que disputava o metro quadrado de cada calçada. Eu vestia um agasalho Adidas azul-marinho em meio a pessoas encapuzadas, com as mãos enfiadas nos bolsos. Eu ia devagar, na contramão e sem destino-rumo, como na infância. Precisava desesperadamente de um Café. Ao levantar os olhos, me deparei com um prédio-cinza-sujo-antigo emergindo solitário numa esquina. Atravessei a rua. A estátua em bronze fincada na calçada era de Camões. Dei de ombros — não era leitura-minha. Nunca nutri simpatia por seus versos. Segui em frente e ao olhar para cima, esbarrei nas grafias escuras como as que rondavam o muro da vila-vizinha da minha infância. Sem idioma-suficiente para entender o que era palavra-grafitada, tentei descobrir o que era o lugar. Biblioteca Mário de Andrade — explicou-me um tipo africano-sorridente, com guias coloridas no pescoço. A simpática Figura desdobrou-se para me fazer compreender o seu idioma. Agradeci a ele, como quem reverencia a uma entidade mística.

Dez anos depois, publiquei o meu primeiro romance.

 

Real ou imaginário?

Um dos temas que sempre rondaram a minha mente… Antes de decidir me aventurar pelo universo da escrita — até por ser um assunto recorrente no mundo de onde vim — a psicologia —, é o limiar da tríade: real, fictício e imaginário.

Nas pesquisas que fiz, encontrei uma tênue relação entre a loucura — enquanto elemento dionisíaco — e a realidade das coisas, suas causas e consequências.

Percebi que o mundo artístico flerta — sem cuidados ou preocupações, e com qualquer coisa de naturalidade — com a insanidade. Ser louco é, ao que tudo indica, uma condição essencial para o indivíduo Artista que se equilibra entre o real e o imaginário. Ora pende para um lado. Ora para o outro… Não seria surpresa se, em algum momento, ficasse impossível diferenciar um do outro.

Pessoa acusou em seus versos — ‘o poeta é um fingidor. Finge tão completamente que chega a fingir que é dor a dor que deveras sente’. O homem que escrevia sentiu-se a vontade para afirmar que o artista transita por mundos distintos, sob medida para a sua loucura. Mas há consequências… o homem não sai ileso dessas realidades e a Arte o salva de si mesmo ou o condena. 

Eu estava na FLIP — no ano de 2009 —, quando a presença de uma Senhora francesa causou certo frisson nos caminhos que me levavam à Tenda do evento em Paraty. Não se falava em outra coisa. A ilustre presença da autora do livro “A vida Sexual de Catherine M.” — era assunto em todos os cantos e bancos — principalmente por ser a responsável por gerar enorme estardalhaço na sempre tão moderna Paris, que se mostrou incapaz de lidar com a narrativa tão livre de amarras da autora. 

Catherine, sem pudor — como é dever de um autor —, escolheu narrar sua apimentada relação com homens e mulheres, a partir dos seus dezoito anos. Ela tinha muito a contar. Afinal, soube se aproveitar — como poucos — a aclamada liberdade sexual.

Quando Millet foi anunciada… tinha acabado de devorado as poucas páginas de seu livro. Ao contrário de muitos ali, não acusei espanto ou horror. Considerei o estilo de Millet — que é também crítica de arte e fundadora da conceituada revista Art Press — bastante raso… e precário.   

“Participei de uma suruba pela primeira vez nas semanas que se seguiram à minha defloração”. E acrescentou: “Me pegam e me viram em todos os sentidos que querem”.

No meio da multidão — que se acotovelava para ouvi-la — percebi que a maioria ali, parecia estar interessada nos bastidores das aventuras da Autora. Admito que ri diante dos olhares ávidos por uma resposta. Eu estava ali para examiná-la de perto… ouví-la. E ao fazê-lo, percebi que Mulher e Autora eram figuras dissonantes. A Mulher Catherine era uma Figura miúda, encolhida e tímida. Criatura conservadora e ponderada. Senhora de modos controlados. Uma perfeita Dama. Enquanto a Mulher que escreve é um personagem solitário, quase uma sombra que precisa de um mísero fio de luz branca. Figura imensa, atenta… sem pudor e que gosta das intensidades que provoca na própria pele ao escrever fantasias que o corpo da mulher no qual se deita… nem-sempre-aceita-acolhe.

Ficou visível que existe em Millet qualquer coisa de prazer e satisfação ao narrar sua literatura. Ela alimenta uma personagem. O que me levou de volta às aulas freudianas na faculdade… o ‘sexo é sempre oral’

Em dado momento, Catherine-Mulher se dirigiu a plateia e disse, em voz alta, totalmente consciente — ‘o autor decide o que vai mostrar’. Parecia tentar explicar o motivo de sua escrita-livro e de sua presença na Feira literária. Quase levantei a mão num impulso — convertida em aluna — para lembrá-la de que ‘é o leitor quem decide o que irá enxergar’. Recolhi a mão porque o leitor contemporâneo anda carente de realidade… como se o imaginário se mostrasse fora de alcance por não ter sido atiçado lá na primeira infância.

Ao que tudo indica, nesses novos tempos, o velho clichê qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência precisará se adaptado e os limites entre real e imaginário terão que ser revistos…  

A escritora que vive em mim inspira-se…

Nas pessoas! E em seus muitos movimentos de vida e diálogos de momento. Gosto de provar de seus contornos, aprendendo-os sem pressa, como um artista que observa uma paisagem. Ouví-las durante suas distrações… e avançar por dentro, até me misturar de tal maneira que não sei mais quem sou, tampouco quem são eles.

Não são todas as pessoas que encontro pelos caminhos da cidade que me inspiram. Apenas as que despertam em mim… aquele precioso minuto de silêncio que me permite ouvir-sentir além das superfícies…

Como acender um cigarro e tragar pesado… lançando no ar pesadas baforadas de nada. Eu não fumo! Mas gosto imenso dessa cena que me remete a tantas autoras-minhas. É apenas uma imagem para lidar e perturbar a minha rinite.

Eu costumo sair para caminhar quando a vontade alcança os meus músculos e nervos. Sem mapas. Gosto dos passos desorientados dos traços, da perspectiva das calçadas… de onde posso apreciar as cores sofrendo mutações. As janelas abertas ao vento. As pessoas com seus passos apressados-equivocados a tropeçar na realidade…

Às vezes, paro alguns instantes na Banca de jornal.
Leio as notícias de todas as segundas-feiras.

Atravesso a rua… cumprimento um desconhecido que passa por mim. Vejo amigos se abraçando num reencontro não programado. Atendo um telefonema. Digo um “alô” incomodado. Quem ainda se lembra de usar o telefone para essa estranha finalidade em dias tão contemporâneos? A moça-com-sua-voz-de-sexta-feira — carregada de sotaque — fala tão rápido que eu não consigo saber o que está a me oferecer.

Entro no café entre esquinas… peço um latte e me sento no balcão — depois de alguns alôs-e-olás. Descubro que minha caixa de entrada está lotada. Respiro fundo e vasculho a realidade… esbarro em um casal se dissolvendo em palavras agudas. Uma mãe a sacudir o filho. A criança escapa… corre-atravessa-a-rua.

Rotina alterada. Gritos. Freadas bruscas… A criança nem sabe o que fez. A mãe — com o cuore fora do peito — a alcança. Dispara falas-gestos-corretivos-sem-efeito. A criança — a bordo de sua inocência — parece achar tudo muito exagerado.

A vida volta à normalidade… uma estranha se senta ao meu lado. Lamenta a quase morte-da-criança. Saia da farmácia com dúzias de remédios para a voz-garganta-nariz-olhos-sofrimentos-eternos-da-mente-e-do-cuore. Morreu no lugar da menina. A moça espirra-tosse-reclama do verão… e dispara falas sobre o assunto de todos os dias: algum político foi preso. Aquele velho-conhecido discurso sobre corrupção do qual me afasto.

Um estranho se senta do outro lado… coloca sobre o balcão o copo brando de latte, um livro-conhecido — 1984 de George Orwell — com marcações coloridas… e um pequeno caderno com Hopper na capa. O olhar se avoluma. Tento decifrar a figura com tatuagens espalhadas nos dois braços… Seria o personagem que procuro para me habitar-ocupar.  Tomo emprestado seus moldes.

Ele percebe meu interesse. Sorri… corre o olhar por minha figura. Desbrava-me… e se apressa em falas bobas-agudas. Tudo e nada. Discursa a respeito do dia-lugar-café-livro-mundo-incômodos… E eu lamento sua fala.

Bebo o que resta de café no copo. Despeço-me… Tenho uma excelente desculpa pronta para uso em aborrecidos momentos. Muitas coisas por fazer lá por casa.

Calçadas para andar. Pão para comprar. Meio fio onde me equilibrar. Uma folha que se desprenderá do alto de alguma árvore e precisarei estar lá para colher. Uma crônica sobre as manhãs de fevereiro-carnaval… para escrever. E o essencial: um personagem para encontrar…

27  | às segundas…

Acordei cedo — coisa pouco comum para essa figura-humana-noturna que sou. Espreguicei os músculos e nervos. Alonguei braços-pernas-ponta-de-dedos-pescoço… esticando todos os ossos do corpo — como faz a menina de quatro patas da casa.

Respirei fundo — como um monge — uma saudade-peculiar que despertou comigo. Talvez um resquício de sonho que ficou em algum canto da pele. Nunca me lembro do que é sonho-dentro-do-sono. Água fria no rosto e o olhar no espelho — em ângulo nada reto. Gosto dos meus contornos. Os cabelos brancos rebeldes e meu sorriso trabalhado na ironia.
Apertei o botão da cafeteira…e o som rouco-gostoso impulsionou certas lembranças: o som do carrilhão gritou dentro, avisando as oito horas da manhã, ignoradas por mim, que comecei a cantarolar — would you write, would you call back baby if / I wrote you a song flapper girl… e a me mover, com a xícara em mãos, pelos cômodos da casa.

É segunda-feira no calendário confeccionado nesse ontem que já vai longe. Bebo outro pesado gole de café e o corpo começa a despertar — flapper girl, flapper girl / Prohibition in curls / Hair of gold and a neck of curls / It’s flapper girl caminho pelo lugar, observando a mobília e paro diante da janela. Meu olhar busca na paisagem qualquer coisa de inspiração para o texto do dia.

Escrevo diariamente ainda que não sirva para nada. Tenho consciência de que preciso exercitar o traço.  Escrevo sobre a garoa que voltou. A respeito da moça que limpa a janela do sétimo andar do prédio da frente, sem qualquer cuidado ou segurança. Sobre o rapaz que grita os ovos à venda antes das dez da manhã e a mãe que agita a menina na área de recreação do prédio. Sou como o gato na janela da frente… ele agita o rabo, lambe as patas e mia seu descaso com as cenas cotidianas. Trocamos olhares e ele me mostra os dentes-caninos, como se soubesse que irei escrever sobre ele também.

Encontro no dourado que resvala nas faces envergonhadas do velho prédio-blue — e suas muitas janelas entreabertas — o que preciso. Entro onde não sou convidada e fico, como se fosse visita que, chega sem avisar.

Percebo dois personagens em seus movimentos de vida-realidade-ilusões. Uma sonora discussão — com dedos em riste — acontece no quinto andar. Face rubra. Olhar furioso. Palavras suicidas a saltar das bocas. É tão cedo… penso, enquanto repito outros versos da canção — I been gone but you’re still my lady / I need you at home / If you ain’t behind my door… e a discussão que até então era feita de gestos e palavras ruidosas, como se houvesse uma disputa para ver quem falava mais alto… vira batalha de dedos-braços. Dois corpos não ocupam um mesmo lugar. Ela dá o primeiro tapa. Ele revida e ela o empurra. E as palavras suicidas saltam novamente da boca. De repente, como numa tempestade, um instante de calmaria. Se entreolham e vejo nos olhos dela qualquer coisa de sorriso. Talvez nem se lembre mais o que era discussão.

Bebo o último gole de expresso… e meu olhar atento não passa despercebido. Fecham-se as cortinas… numa espécie de revolta — totalmente desnecessária — que me faz pedir desculpas silenciosas… como se fosse eu o motivo da discussão.

Respiro fundo numa tentativa vã de resignação. Do lado de dentro a memória sorri-satisfeita ao perceber que guardou para si qualquer coisa alheia — para esse exercício de linhas… e feito criança que faz arte, repito movimentos conhecidos.

Outro café, a canção no repeat lovers come, lovers go / lovers leave me alone / she’ll come back to me — e os dedos em movimento pelo teclado.

 | aumenta o som |

Criando e desenvolvendo o personagem

Depois de observar por um bom tempo… a parede-branca da sala onde me sentei para escrever o meu romance, dei pelo movimento frenético dos meus dedos no teclado. Como se houvesse um horário pré-agendado no mundo para a escrita acontecer e pronto.

Não contei as palavras, as linhas ou o tempo — como fez Jack Keroauc em seu diário — meu livro de cabeceira à época —, apenas observei o feito. A tela cheia de frases inteiras, bem pontuadas. Satisfação e estranhamento… porque em algum momento anterior àquele, eu havia considerado que talvez não acontecesse absolutamente nada.

No entanto, lá estavam todas aquelas páginas do Word devidamente preenchidas. Rolei as páginas uma a uma… um sem-fim de vezes para me certificar do feito. Imprimi o texto, preparei uma xícara de chá e comecei a leitura.

Uma coisa é escrever. Outra é o exato instante em que você deixa de ser o escritor e se transforma no seu leitor — talvez o mais importante deles. O leitor que ocupa o lugar do escritor é severo-rude-crítico-grosseiro-insuportável… um eterno insatisfeito.

E foi após ler as quase cinquenta páginas — escritas num sem-fôlego — que eu percebi que sabia pouco ou nada a respeito da minha personagem-protagonista. E lá se foi a minha generosa porção de paz — recém-conquistada —, sugada por um ralo imaginário.

Alexandra Mendes era uma jovem adolescente insatisfeita com o destino traçado para ela, na ocasião de seu nascimento. Ao atingir a fase adulta ela herdaria a máquina de costura — que estava na família há várias gerações — e se transformaria na Maria-costureira da pequena cidade de Teodoro.

Eu considerei como data de nascimento da personagem, o instante em que a concebi. Todo escritor precisa estar atento ao seu redor para poder tirar proveito de tudo que se oferece a ele.

E a realidade em meados de dois mil e oito me ofereceu S., uma artista plástica que em sua passagem por São Paulo, ficou alguns dias a casa. Dona de um olhar cabisbaixo, triste… se esforçava para convencer a todos de sua estabilidade emocional. Exibia a foto dos filhos (um casal) exaltando a beleza-inteligência e outras muitas qualidades repetidas tantas vezes, que pareciam fazer parte de uma checklist. O marido era o melhor dos homens — o real motivo de seu sorriso opaco.

Ela tinha ido ao Rio para fazer a entrega de algumas peças e estava em São Paulo para uma exposição. Viajava na companhia de uma jornalista recém-formada. Era nítido que estavam apaixonadas. Dava para sentir que rimavam uma boca a outra, um olhar ao outro… uma pele a outra. S., no entanto, repetia para si — feito um mantra, na tentativa de se convencer — que a jovem tinha idade para ser sua filha. Resistia aos impulsos na pele, por considerar que não podia e não devia comprometer tudo o que tinha… por uma simples aventura. Ela precisava pensar nos filhos, no marido, nos pais — ainda vivos —, nos vizinhos, amigos. Só não podia pensar em si…

Mas era tudo que eu tinha… o passado desenhado por mim e o futuro oferecido por S. Faltava, no entanto, o fino fio que uniria um ao outro. Me senti uma folha secar no galho com a chegada do outono… prestes a ser solta no espaço-ar.

Um escritor deve saber absolutamente tudo sobre o seu personagem. Nada pode lhe escapar. É preciso pensar todas as perguntas — as impossíveis e improváveis — e ter todas as respostas.

Respirei fundo e sai para andar calçadas… é engraçado como a mente entra em um torvelinho de emoções e nada se organiza dentro. Andar, no entanto, tem o mesmo efeito que tinha uma ordem dada por C., vai arrumar o seu quarto. Às vezes, o caos se estabelecia por lá. Não sei o que acontecia. Mas, todas as coisas deixavam os seus lugares. Eu escolhia uma trilha sonora e levava um dia inteiro: separando-guardando coisas. E no final do dia… eu tinha um quarto de novo.

Durante a caminhada eu me ofereci como laboratório da personagem. Emprestei a ela algumas coisas minhas. Não tinha sido nada fácil decidir o que cursar na Faculdade. O meu teste de aptidão insistia em dizer o que eu não queria ouvir. Me lembrei do meu olhar para o Campus e a certeza de estar onde eu queria estar, desde que eu soube daquele lugar e suas tradições.

Voltei para casa consciente de que Alexandra era uma cidade-pequena e de que eu precisava tirá-la de sua zona de conforto, jogando-a num mundo-novo-inédito, onde iria colidir com alguém que fosse seu contrário — um mundo inteiro. Como disse Robert Walser: nada é tão gratificante para um ser humano como conseguir superar-se.

(4) Estudo do personagem…

Ela atravessou minhas pausas… insurgiu entre os meus avessos, infiltrando-se em minha geografia… feito o vento! A observo num sem-sorriso, dentro da distância segura das ausências que valem. Lá fora é essa estação de momento — tudo e nada se misturam entre nós duas — eu a decoro-devoro-aprendo… sorvo sua matéria-substância-amálgama! Aprendo seus gestos menores: o cigarro entre os dedos da mão direita num encaixe silencioso. Repito-o como se fosse coisa minha — levo o cigarro imaginário à boca, para pesados tragos de fumaça que percorrem vilas-aldeias, despejando no ar uma falsa serenidade esbranquiçada.

Ela é toda estrangeira, quase um território proibido.

Vou vestindo seus movimentos um a um… percebendo suas pausas. Na mesa, repousa um copo branco de café, levado aos lábios para goles entrecortados, estranhamente suavizados. Seu olhar aprecia o que é avesso-memória-ausência… Ela  a tudo enxerga e nada vê — quer assistir às coisas acontecerem em vermelho, mas a realidade insiste em outros tons, que ela reprova.

Os óculos, afastados dos olhos — evitam os desconfortos recém-chegados — unindo-se aos objetos outros, que ela esparrama sobre a mesa: maço de cigarros, isqueiro, agenda, celular, chaves — tudo numa desordem natural — típica de quem escolhe o que é próximo-seguro-conhecido… Ao lado, uma bolsa feminina carrega miudezas, que completam sua geografia singular.

Ela não é uma cidadã do mundo, mas quer ser. É uma colecionadora de fracassos-desconfortos. Cada gesto seu… carrega várias mortes e diversas não-vidas.

Ela acontece do outro lado do vidro — longe-perto-fora-de-alcance-dentro-fora. Não me enxerga. Seus olhos não tocam superfícies alheias. Estão focados no seu íntimo feito em pedaços… que ela tenta reunir para colar. Mas não consegue combinar os encaixes. Seus gestos mínimos seguem contidos dentro de uma tarde a dizer um dourado infeliz…

A distância entre nós duas não se dissolve… permanece imutável. A mesma de minutos atrás, de ontem e antes de ontem. E me agrada imaginar que tal condição é definitiva.

Ela acende outro cigarro… deixa no ar outro rastro de vida, como se fosse o próprio oxigênio, feito carbono a demarcar o território, que ela toma para si, conforme se deixa tocar pelas figuras que a rodeiam. Seu corpo é um quadro e a cidade sua moldura.

Meço suas realidades… e uma fragilidade — que é vento frio na pele — tropeça em minha anatomia. Eu vou acumulando riscos… desenhos que a mente faz do lado de dentro — onde tudo acontece primeiro e é esse silêncio agudo.

E, de repente, constato… quero ser Ela! Penso em um nome qualquer. Claudia e começo a desenhar traços numa folha avulsa…

O personagem se fez!