Um dia de chuva…

Cara mia,

Escrevo-te no ar, desta sala sem janelas e com vasos de plantaE s carentes de água-afeto, cadeiras colocadas lado a lado e a temperatura controlada por um aparelho de ar-condicionado. É uma dessas caixas humanas, inventadas para serem aconchegantes, mas nem tanto. Somos duas a esperar pelo atendimento agendado, sem saber qual será a próxima. Reparo na figura de olhar delicado, rosto branco-maquiado, imerso em dúvidas e povoado por descontentamentos passados-presentes-e-futuros.

Fechei os olhos e me concentrei na voz de Lèon que canta apenas para mim — And I wish that I could give you more When you’re leaving me an open door. Me distrai e comecei a repassar o dia de ontem… tão intempestivo. Ainda sinto sono. Mas não adormeço. Quiçá cochilo. Os olhos fechados, no entanto, permitem qualquer coisa de descanso — um desligar-se da realidade e suas façanhas alucinógenas.

O com da música me traga para um ontem qualquer. Ouço a minha própria voz dizer a C — preciso desesperadamente de uns dias de chuva. Ela tinha um olhar-cúmplice. Nem sempre dizia palavra. Lembro-me que certa vez, fui acordada com todo o cuidado, dentro da madrugada. Ela me chamava para ouvir os trovões que começavam a espocar nos céus. Eu abracei com toda a força que uma criança de sete anos pode ter nos braços. Ficamos as duas diante da janela do meu quarto, vendo os clarões, ouvindo o dom das chuvas…

Eu reclamava toda vez que alguém dizia: mas que dia mais feio. Eu tinha-tenho preferência por dias acinzentados, com pesadas nuvens no céu e com o tremor dos trovões em minha geografia — esse mapa que se reinventa ao toque.

A primeira vez que uma tempestade atingiu o meu corpo, eu tinha apenas cinco anos. Não havia previsão de chuva para aquele dia. Escureceu de repente. Eu senti a mudança na minha pele e tentei avisar a humana criatura que me acompanhava. Ela estava ocupada com suas coisas de adulto e me ignorou. Ao pisar na calçada, levou um susto ao ver as nuvens escuras no céu e os ventos nas ruas. Fui arrastada pelas calçadas-esquinas-ruas. Até tentei dizer que era tarde. Outra tempestade se formou! Sem o fascínio dos relâmpagos e dos trovões.

Chegamos a casa com a chuva na pele, nas roupas. Eu me comportei com um cão bem cima do tapete da porta de entrada e diante dos olhos de C., que tentava – sem sucesso – conter o riso diante de uma aborrecida cunhada que reclamava as roupas molhadas, o corpo encharcado e o futuro-resfriado — que acometeu apenas a ela…

E ao regressar a este tempo-sala-espaço-branco sem graça, sinto vontade de ler poemas de Ana Cristina César. Sinto a textura das páginas do livro, deixando em cima da mesa ao sair. Já ouviu falar em eco de versos lidos-na-noite-de-algum-ontem-qualquer?

Au revoir

Voltei a escrever missivas

Marco,

…no final desta manhã dourada de agosto, escrevo-te — repetindo o velho ritual da minha infância: mesa da cozinha, xícara de chá… e o olhar lambuzado pela paisagem de tantos “ontens”. Algo que estava sepultado em alguma parte de minha memória-corpo-pretérito. Mas, depois de entrar e sair tantas vezes da cozinha… espiando a mesa, o seu formato, o lugar, as cadeiras e a chaleira no fogão — aos poucos, fui recuperando certas aromas e ficou impossível resistir…

Não consegui — e eu tentei — me lembrar da primeira missiva que escrevi. Vasculhei todo e qualquer fragmento de realidade, que pudesse servir de Norte. Mas cá estou eu…  diante desse Sul que se esvai — por falta de memória! Pior, nem o meu imaginário foi capaz de me socorrer. E eu recorri a ele, como faço nos momentos mais estranhos… por preferir a ficção à realidade.

Quero acreditar, meu caro que, em algum momento, encontrarei um pouso para esse meu vôo… Eu gostaria de ter essa lembrança em mim e levá-la comigo por aí. Ao ocupar o banco de um coletivo, seria singular fechar os olhos e ouvir o chiado do grafite, avançando seguro pela folha e as palavras escolhidas…

Eu me lembro do exato instante em que deixei de escrever missivas. Estava exausta e sem ânimo para diálogos. Desejava ausentar-me das coisas do mundo. Refugiar-me num canto-qualquer… sem receber ou enviar notícias.

Ao voltar para casa, arrastando o meu corpo pelos caminhos conhecidos, encontrei uma dúzia de envelopes na caixa de correspondência. Não tive cuidado algum. Despejei de uma só vez… no lixo da cozinha e fui embora.

Após todos esses anos… observo a cena, o cesto-cheio e não me arrependo. Ocorre, no entanto, a pergunta-nunca-feita: o que pensaram-sentiram aquelas pessoas com quem me correspondia? Eu tive um correspondente que interrompeu a correspondência após anos de envelopes indo e vindo — de um país para o outro. Eu tentei uma-duas-três vezes e compreendi a ausência. Guardei todos os envelopes — amarrados com fita — no meu baú e devem estar lá, bem no fundo, debaixo de todas as outras coisas para quem sabe um dia, rever ou despejar de uma só vez no lixo.

Por ora, meu caro, tudo que posso dizer-afirmar é que voltei a escrever: missivas e você foi eleito correspondente-primeiro. E então mar azul, vais contigo me levar?

Au revoir