Um poema de Adriana Aneli

confesso 
não percebi o momento de nossas mãos
algemadas
tentei me segurar enquanto você me levava
e me divirto agora que não podemos nos
separar
um do outro.

confieso 
no he notado el momento de nuestras manos
esposadas
intenté agarrarme mientras tú me llevabas
y me divierto ahora que no podemos
separarnos 
uno del otro.

Adriana Aneli — …nascida e vivida em São Paulo desde 1976. Aos 13 anos acreditou que a literatura era mesmo um bom negócio: depois de lançar livros, fazer recitais (vestida de mamãe Noel em cima de um caminhão) e ganhar um programa de rádio para chamar de seu, achou que estava errada e foi fazer Direito. Após sua metamorfose de décadas, redescobre a Tempestade Urbana e com Boca a Penas está de volta ao Scenarium. Fui!

Queimávamos madrugadas de fio a pavio…

Caríssima AA.,

A tarde começa a cair lá fora, por cima da cidade com suas ruas em “movimentos” de sexta-feira. Passa das cinco e eu ainda não aconteci para o mundo. Sempre que chove fico dentro da pele — em suspenso. Minha alma se equilibra em desacordo com os ritmos da realidade… faço chá, reviro caixas, abro antigos cadernos-diários, arranco folhas para rascunhar o momento e me perder — como se estivesse a arrancar de mim alguma coisa indevida.

Faz dias que não chove por aqui… uma vida inteira-imensa e me incomoda essa falta de previsão de trovões e nuvens. O ar pesado me causa cansaço e há tanto por fazer e viver.

Ainda há pouco… antes de me sentar aqui para escrever-te — abri meu velho diário e um envelope antigo saltou lá de dentro… O detive antes que chegasse ao chão e por alguns segundos espiei o passado contido em seu avesso. Recordei tudo que foi e não foi…

Senti a textura na ponta dos dedos… o resto de perfume que o papel guardou. Provei de sua cor opaca. Você já reparou como envelhecem os papéis? É tão poético acompanhar o efeito do tempo.

Mergulhei na leitura da conhecida caligrafia descuidada-irregular-indócil… difícil de ser lida. E havia uma fotografia e atrás com a data e o lugar onde foi tirada: Wazemmes — 2003.

Fiquei em suspenso, minha cara. Experimentei da falta de coisas não vividas — como propõe o poema de Ana Hatherly ‘os apressados’.

Os versos se misturaram as linhas escritas por Pr., que falava da vida, de seus medos e vontades, incertezas, sonhos, ilusões. E confessava escrever do segundo andar de um prédio velho e escuro, onde tinha alugado um apartamento. Nas primeiras linhas… reclamava de um jovem músico, que se repetia em notas — todos os dias, no mesmo horário. Dizia rezar — mesmo sendo ateu — para que ele aprendesse a dominar o instrumento e as notas… porque estava a gostar do lugar, que levou semanas-meses — uma vida inteira — para ser encontrado.

Ele era o tipo de pessoa, que precisava vestir os cômodos… uma espécie de barco encalhado a convocar ventos e marés. Não era qualquer lugar que lhe servia e se dizia amaldiçoado por ser assim. Mas não fazia o menor esforço para ser diferente-mudar.

E era uma pessoa exigente. O quarto precisava receber sol pela manhã — a melhor hora do dia para se aquecer os lençóis… segundo ele.  A sala tinha que ficar no meio do caminho para algum outro cômodo. Fazia questão de uma varanda para as ruas e janelas grandes onde pendurar cortinas brancas.

Não cheguei a conhecer a morada. Não houve tempo — apenas vontade-desejo. O imaginário, no entanto, foi e voltou inúmeras vezes de lá — a cada missiva que chegava, com novidades. Acompanhei a escolha dos móveis. As inúmeras visitas a lojas. A primeira compra de ingredientes num desses empórios antigos. O ajudei a preencher os armários. A escolher a louça… pratos azuis, canecas amarelas e talheres pesados. Eu lhe enviei um mensageiro dos ventos, que levou meses para atravessar o oceano e ser pendurado na janela do quarto para as noites-manhãs-tardes de ventos. Ouvimos juntos a primeira ventania enquanto tomávamos uma xícara de chá de anis com folhas de laranja — o nosso favorito.

E hoje — passado tanto tempo — visitei novamente o espaço… como se para lá tivesse me mudado no último minuto. Habitei por alguns segundos a fotografia. Converti a minha figura em personagem-transeunte… e vivi dentro de um fim de tarde, quase noite… a suturar levemente o cuore. Sentei-me no sofá, ao lado dele. Encostei a minha cabeça em seu ombro e lhe contei as novidades — sobre meu novo romance — enquanto esperávamos o apito sonoro de sua chaleira prata…

Ocupei todo o espaço… colei novos cartazes de filmes nas paredes. Grudei uma bandeira inglesa atrás da porta do quarto de hóspede. Espalhei os nossos livros russos pelo chão da sala, sobre o tapete de linhas. Pendurei algumas peças de roupa no armário. E o lugar pequeno-escuro, com poucos móveis, calmo e lúcido aos poucos se moldou a minha anatomia.

E no quase fim de tarde… vi o sol lamber a pequena janela da frente… a resvalar no vidro, deixando aquele rastro de poeira solar no ar… e ir embora len-ta-men-te pouco depois. Todo o cenário se converteu em sombras… que escorreram pelas paredes de meus olhos fechados.

Voltei para cá… amparada pelo breu e o silêncio de quem lê uma missiva, observa uma fotografia e conversa com alguém, que talvez compreenda o silencio do meu corpo em suspenso nessa primeira-última hora.

À tout à l’heure!