Ainda é (muito) ced0 para tanta alegria

Depois de uma noite tumultuada, desisti do travesseiro e fui andar pelos cômodos da casa e acabei na cozinha. Se eu fosse adepta ao vício… daria pesadas tragadas na varanda e deixaria no rastro um ar de nostalgia.

O que me tirou o sono? Um personagem que chegou e ficou. Dialogamos boa parte da noite, que escorreu pelas paredes. Eu passo horas inteiras a falar sozinha, com as paredes ou o teto, antes de escrever… Quando saio pelas ruas falo com as pedras das calçadas, com as árvores e com os cães a latir nos portões das casas.

Ao voltar para casa… peguei a panela, uma lata de leite condensado, duas colheres de chocolate, meia colher de manteiga sem sal e uma colher de pau.

Enquanto observava o movimento hipnotizador da colher — devo ter relevado em algum texto-anterior… que cozinhar me acalma-distrai-da-realidade, como se eu mergulhasse em uma espécie de transe — um grito serviu de despertador… Arrancando-me da melhor parte do sono e colocando-me de pé, em um pulo:  

bom dia, dia. Uhuuuu.

Eu observei os azulejos da cozinha, contando os desenhos — um maldito hábito, quase um vício que não consigo abandonar. Orientei as orelhas para me certificar do que havia ouvido.

Nenhum outro ruído aconteceu e eu voltei a observar a ‘massa’ do Brigadeiro que começava a ganhar forma.

Segundos depois… outro grito! Dessa vez mais longo  — bom dia, vizinho. Bom dia pessoas lindas. Bom dia mundo-vida-árvores-cidade. Bom dia a todo mundo…

Espiei o relógio grudado na parede ao lado, coisa do Marco. Eu não preciso de ponteiros dizendo horas-minutos-segundos. Passava das sete e eu pensei em ir até a varanda para identificar de onde vinha tamanha euforia matinal. Como eu não podia abandonar a panela, me contentei com o meu imaginário, que foi abruptamente interrompido por outro grito — rude, intempestivo, agudo e insatisfeito — cala a boca seu otário, vai te #%/+$_%.

E o animado gajo não se conteve, respondeu:  — um maravilhoso dia para a senhora também. Seja muito feliz. Uhuuuuu. Bom dia mundo

Ouvi o som da janela sendo fechada de maneira abrupta… Imaginei cacos de vidro despencando no ar. Aos risos, me pus a imaginar toda a rabugice daquela vizinha-mulher, desenhando gestos-rugas-roupão-de-algodão e cabelos por pentear.

Desconhecia o motivo para a alegria matinal do gajo… O que sobrava nele, faltava nela. Solitária, deveria estar a lidar com o preparo do café em seu bule velho-amassado e a reclamar dos ponteiros da realidade em suas voltas nada cúmplices. O dia? Apenas uma data qualquer no calendário. O mês era outro e ela nem se deu conta dos que se foram. O ano nem começou e para ela, havia se encerrado. As contas vencidas se acumulavam na porta da geladeira e tudo que ela desejava era voltar para a cama e ter algumas horas de sono tranquilo. A vida começou cedo (de novo) e ela estava atrasada para a maioria das coisas. Acostumou-se a chegar tarde e ficar fora das melhores coisas. Reclamar virou um presságio e rugir com a alegria dos outros é um hábito.

A última vez que desejou ‘bom dia a alguém’ foi apenas para retribuir um cumprimento no elevador — mera formalidade. Uma obrigação social. Coisa que faz sem vontade alguma. Viver não é para todo mundo, mas o chato é que é para os outros.

Outro grito na janela a ecoar pelos ares toda aquela alegria matinal que não ecoava em ninguém, deixando-o solitário. Mas não desistiu. E sem saber… me fez lembrar do galo em seu canto matinal no quintal da casa do nonno  — no templo da minha infância. A mesa posta. O cheiro de café. Pão quente e manteiga por derreter. A preguiça na pele e os raios de sol a dourar tudo que encontrava pela frente. A gente acordava aos poucos, ali na mesa mesmo. A cada gole de leite com café… um sorriso e os planos para mais um dia. Vontade imensa de correr. Pular. Subir. Escorregar. Nadar. Comer. Fugir. Respirar. Sorrir  — verbos fáceis de se conjugar.

Despejei a massa escura na vasilha de vidro e levei meus passos até a varanda. Olhei todas as janelas até encontrar o gajo com sua camiseta preta. Não dava para ler o que estava escrito. Percebi, no entanto, que não era alegria que o movia. Coloquei as duas mãos na boca e gritei o mais alto que pude: hei, você aí em sua janela particular de vida… Tenha um ótimo dia, que seja azul e leve e maravilhoso.

Outros apareceram e gritaram também, outros desejos, outras vontades e ele fechou a janela. E o que para ser fim… virou início, de novo!

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Pronto para o diálogo? Eu estou (sempre)