Não perdi o hábito de escrever diários

Construíndo realidades literárias

Dou aulas literárias avulsas e coletivas para quem quer se entender com a arte da escrita… No começo, ao receber o convite para fazer tal coisa, pensei que seria algo impossível. Tentei inventar uma desculpa — admito que não sou boa com isso. Sou do tipo que diz sim ou não, sem justificar minhas decisões.

Optei por pedir um tempo para pensar a respeito. E quando dei por mim estava a equilibrar o impossível, como um malabarista circense.

Desenhei a proposta… que foi aceita sem maiores questionamentos. Ao escrever a respeito, parece que foi em outra vida. A pandemia arrancou páginas do meu calendário e até agora não consegui reposicionar certas datas, os lugares-pessoas.

Desisti de me incomodar com isso. Aproveitei para me adaptar ao processo… o que me permitiu escrever avulso, em folhas soltas nos últimos anos. A idéia é deixar para alinhavar tudo depois de escrito. Fui seduzida pelo processo, que daqui a pouco alguém irá imitar-copiar. Afinal, não se trata de algo inédito. Outros, antes de mim, devem ter enfrentado processo semelhante.

Escrever me ajuda a pontuar os fatos e a estabelecer o fio narrativo — que orienta um bom texto. Admito que acuso espanto quando escritores afirmam não trabalhar com esse elemento básico e essencial para a boa escrita. Desorganizo-me toda e levo algum tempo para conseguir pontuar o meu discurso.

Na última aula, recorri ao discurso em voz alta: é necessário mobiliar a realidade. Qualquer pessoa — até uma criança em fase escolar — é capaz de ter uma idéia. Basta se dispor a isso. O nosso imaginário está pronto e atento para nos disponibilizar apetrechos — de todos os tipos. Saber extrair o máximo dessa idéia, no entanto, é para poucos.

Pois bem, escolhi como exemplo, a rua em que moro… com nome de pássaros. E onde isso me leva? Aos domingos tem feira, com barracas coloridas de frutas e legumes. Antes de chegar lá… há vários prédios e casas. Algumas antigas, com venezianas de madeira e aquele portão de ferro baixo e muretas de cimento — que estão com os dias contados. Na semana passada demoliram mais uma. E na tarde de ontem… me deparei com uma placa de demolição presa no portão de outra. E ouço o Caetano cantar: “a força da grana que ergue e destrói coisas belas“.

No passo seguinte, surgiu a questão: que personagem eu colocaria neste cenário? Uma fotógrafa de olhos riscados, nascida em outro país e que migrou para São Paulo por ser um ponto que falta no seu mapa de metrópoles? Ou uma advogada que descobriu o bairro durante um passeio e se encantou com os traços de uma casa, decidindo que ali seria o melhor dos lugares para criar a sua filha?

É disso que se trata a escrita… de moldar o lugar e as pessoas a partir de nós mesmos. Não adianta fugir, ir além das esquinas que dobramos. Atravessar ruas para chegar onde o nosso mapa particular não alcança.

Nós construímos mundos — foi o que disse Virginia Woolf — e eu completo dizendo que, as palavras vem, quase que sozinhas, se aconchegar em nossas realidades.

5 respostas para ‘Construíndo realidades literárias

  1. Nivea

    Eu não sabia que dava aulas de escrita, Lunna.
    Faz sentido e eu fiquei aqui me deliciando com esse jogo de construção de cenários. É muito gostoso saber como um autor cria suas cenas.

    beijokas

  2. Catarina

    Nossa, você descreveu a rua e eu vi todinha ela.
    Meus escritos não seguem esse ritmo, mas entendo isso de fio narrativo.
    Eu gostaria de ter aulas com você. Sendo online talvez seja possível, mas tem a questão do fuso horário. Vou enviar um e-mail.

    bj

    • Luana Alves de souza

      Leio você a caminho de uma aula de Rio Aberto, nas entrelinhas da quadra modelo de Brasília. Há todo um movimento acontecendo pós saída das crianças da escola. Você me ensina e inspira.

Se tem algo a dizer, fale agora... hahahahaha