Cara Suzana,
Acordei no sofá da sala… com o corpo todo torto. Dormi com um livro em mãos, como tanto gosto. Sensação de que a história continua no sono-sonho — personagem-persona.
Coloquei a chaleira no fogo e me pus a cumprir o melhor dos meus rituais: esperar pela fervura da água e pelo meu despertar. Sou uma pessoa lenta ao abrir os olhos. Sinto tudo ao meu redor, através das minhas digitais. Ando descalça, com os pés enfiados em meias brancas a dar pelo chão… Tem gente que abre os olhos e pronto. Eu não! Preciso fazer um reconhecimento das coisas e de seus lugares no meu mundo.
Hoje eu me distrai com a realidade lá de fora… uma algazarra humana acontecia do outro lado da rua. A alegria pautada pelo vício. Um bando de homens em revoadas vazias. Corpos macambúzios e mãos a atirar garrafas atiradas contra o muro-poste, provocando os cães da vizinhança alta. O silêncio voltou a fazer parte da paisagem depois que a esquina seguinte os devorou.
Tão insensato quanto o meu gesto na tarde de ontem: retomei a leitura de O Sol em sagutarius. Um desafio: escrever um Thriller. E lá fui… escrever um capítulo por dia, durante o mês de novembro de um ano-outro. Desde que fechei o ciclo de deitar fora do corpo a história… ensaiei retornos. As desculpas enfileiraram-se em minha matéria-humana. Foi ficando para depois e depois e depois — esse lugar inexistente. O último item na lista de coisas por fazer.
Ontem à noite… aconteceu! Abri a pasta e li cada um dos textos-capítulos. Gostei da trama e do que propõe cada personagem. Mas eu não nego que me espantei com a realidade dos fatos. Não tinha reparado nos fatos que guardei ao longo de minha trajetória e que acabaram ali. Foi um susto, admito. A alma escapou do corpo e voltou cambaleante.
Para a trama, escolhi Milena como personagem principal. Ela me fascinou quando a conheci. Tinha força nos gestos e uma violência imensa no corpo. Eu me lembro de vê-la explodir na mesa ao lado, no café entre esquinas. Não fosse isso, seria apenas mais uma a habitar o mesmo espaço que eu. Ela estava cansada e respirava com dificuldade. Parecia recém-saída de um côma. Colocou-se de pé e esbravejou com os olhos cheios e o corpo vazio: eu estou viva, bem aqui. Olha para mim.
Eu e todas as pessoas no café olhamos! Mas não enxerguei nos olhos dela o que era palavra nos lábios. Ela foi embora e no minuto seguinte, comecei a desenha-la dentro das linhas de Lua de Papel. É a personagem que surge como luz nas trevas de Alexandra e vai embora, sem deixar rastro… O que eu não me lembro é como emergiu para dentro de outra história.
Se tem uma coisa que aprendi nesses anos de escrita, é que nenhum personagem é: “apenas isso”. Milena é uma criatura que se equilibra entre vida e morte. Durante os dias é uma jovem responsável e talentosa, admirada por todos e considerada a herdeira natural de uma das mais importantes advogadas do país. Durante a noite é o inverso. Uma figura que vive no submundo e se alimenta de carniça.
O primeiro capítulo, sem título… se resume a Cecília. Não foi uma homenagem a poeta, que tanto gosto de ler. Mas, acabei por recorrer aos versos de Solombra incontáveis vezes para trabalhar a personagem. Estou considerando usar os versos desses poemas… como títulos para cada um dos capítulos. Tudo experimental, como de costume…
A minha trama e a poesia de Cecília tem em comum o fato de estarem envoltas por uma silenciosa atmosfera de mistério. A sombra, o tempo, a memória e a solidão são os elementos em cena. Um outro sol descendo horizontes marinhos — verso do primeiro poema — seria perfeito: se oferece como um caminho para Milena.
Au revoir