Experimenta a suave melancolia de uma manhã feliz

Cara Suzana,

Acordei no sofá da sala… com o corpo todo torto. Dormi com um livro em mãos, como tanto gosto. Sensação de que a história continua no sono-sonho — personagem-persona.

Coloquei a chaleira no fogo e me pus a cumprir o melhor dos meus rituais: esperar pela fervura da água e pelo meu despertar. Sou uma pessoa lenta ao abrir os olhos. Sinto tudo ao meu redor, através das minhas digitais. Ando descalça, com os pés enfiados em meias brancas a dar pelo chão… Tem gente que abre os olhos e pronto. Eu não! Preciso fazer um reconhecimento das coisas e de seus lugares no meu mundo.

Hoje eu me distrai com a realidade lá de fora… uma algazarra humana acontecia do outro lado da rua. A alegria pautada pelo vício. Um bando de homens em revoadas vazias. Corpos macambúzios e mãos a atirar garrafas atiradas contra o muro-poste, provocando os cães da vizinhança alta. O silêncio voltou a fazer parte da paisagem depois que a esquina seguinte os devorou.

Tão insensato quanto o meu gesto na tarde de ontem: retomei a leitura de O Sol em sagutarius. Um desafio: escrever um Thriller. E lá fui… escrever um capítulo por dia, durante o mês de novembro de um ano-outro. Desde que fechei o ciclo de deitar fora do corpo a história… ensaiei retornos. As desculpas enfileiraram-se em minha matéria-humana. Foi ficando para depois e depois e depois — esse lugar inexistente. O último item na lista de coisas por fazer.

Ontem à noite… aconteceu! Abri a pasta e li cada um dos textos-capítulos. Gostei da trama e do que propõe cada personagem. Mas eu não nego que me espantei com a realidade dos fatos. Não tinha reparado nos fatos que guardei ao longo de minha trajetória e que acabaram ali. Foi um susto, admito. A alma escapou do corpo e voltou cambaleante.

Para a trama, escolhi Milena como personagem principal. Ela me fascinou quando a conheci. Tinha força nos gestos e uma violência imensa no corpo. Eu me lembro de vê-la explodir na mesa ao lado, no café entre esquinas. Não fosse isso, seria apenas mais uma a habitar o mesmo espaço que eu. Ela estava cansada e respirava com dificuldade. Parecia recém-saída de um côma. Colocou-se de pé e esbravejou com os olhos cheios e o corpo vazio: eu estou viva, bem aqui. Olha para mim.

Eu e todas as pessoas no café olhamos! Mas não enxerguei nos olhos dela o que era palavra nos lábios. Ela foi embora e no minuto seguinte, comecei a desenha-la dentro das linhas de Lua de Papel. É a personagem que surge como luz nas trevas de Alexandra e vai embora, sem deixar rastro… O que eu não me lembro é como emergiu para dentro de outra história.

Se tem uma coisa que aprendi nesses anos de escrita, é que nenhum personagem é: “apenas isso”. Milena é uma criatura que se equilibra entre vida e morte. Durante os dias é uma jovem responsável e talentosa, admirada por todos e considerada a herdeira natural de uma das mais importantes advogadas do país. Durante a noite é o inverso. Uma figura que vive no submundo e se alimenta de carniça.

O primeiro capítulo, sem título… se resume a Cecília. Não foi uma homenagem a poeta, que tanto gosto de ler. Mas, acabei por recorrer aos versos de Solombra incontáveis vezes para trabalhar a personagem. Estou considerando usar os versos desses poemas… como títulos para cada um dos capítulos. Tudo experimental, como de costume…

A minha trama e a poesia de Cecília tem em comum o fato de estarem envoltas por uma silenciosa atmosfera de mistério. A sombra, o tempo, a memória e a solidão são os elementos em cena. Um outro sol descendo horizontes marinhos — verso do primeiro poema — seria perfeito: se oferece como um caminho para Milena.

Au revoir

48 – Possuo a doença dos espaços incomensuráveis…

Mariana,

A manhã vai longe… e a galope! É quase hora do almoço do lado de fora dessa janela aberta que sou e não pensei nos ingredientes para esse domingo de sol-frio. Talvez porque ainda não amanheceu em meus olhos. Eu sou assim, cara mia. Vivo à deriva das horas, dos dias-semanas-meses. Eu me demoro um pouco mais a bordo dos ontens que coleciono e me dedicar a escrita agravou mais esses sintomas que coleciono. Sou uma pessoa em estado febril constante. A temperatura do meu corpo varia ao longo do dia…

Nas manhãs eu sou mais lenta… o meu passo demora pelos cômodos da casa, pelas calçadas do bairro e o meu olhar nem sempre alcança a paisagem. Respiro fundo, atravesso a rua, com as mãos dentro do bolso da calça. Sem pressa, desejando ficar no passo anterior… deixo passar essa gente apressada — uma manada humana — me ultrapassar porque não tenho pressa…

À noite… sou outra. Precipito-me em movimentos insanos. Vou de um canto do mundo ao outro num estalar de dedos. Percebo lugares, pessoas. Antecipo-me ao outro que passa por mim… personagem da vida real, esse grandioso palco onde tudo se encena. 

Descobri minha cara, que eu posso me comparar a uma xícara de chá. Não sei se você sabe, mas para se fazer um chá há todo um ritual, introduzido no mundo pelos orientais. É preciso fazer uma pequena pausa no dia. Abrir uma brecha na vida {realidade das coisas e suas causas}, no tempo e no espaço.

Eu gosto de apreciar tudo… a chama azul do gás, a água sendo despejada dentro da chaleira e aquele precioso tempo de espera até ouvir o apito provocado pela ferver a da água. Enquanto isso, vou até a prateleira e resgato um livro de poesias através do tato, sem saber título ou autor. Livro aberto, poesia lida: escolho a xícara. Gosto de uma preta com desenho de elefante, esse gentil animal que tive o prazer de observar durante uma viagem à África. Foi insano ouvir o canto daqueles animais. Ainda hoje sinto o meu corpo trepidar e o cuore falhar ao pulsar e os olhos ficam cheios. Foi uma lição de vida, minha cara. Mas, às vezes, escolho outra.

Separo as ervas — hoje eu escolhi o hortelã, pau de canela e lascas de gengibre. Gosto da sensação gostosa de macerá-las, fazendo emergir no ar o aroma de uma vida inteira.

Você sabe quantas coisas cabem dentro de uma simples xícara de chá? É nisso que penso toda vez que deito a água fervente na xícara. Gosto imenso do som oco e da fumaça que sobe nos ares. E vamos ao tempo de espera mais uma vez para acontecer a infusão. Quando escrevo pequenas notas-mentais-futuras, começo uma missiva (como está) ou apenas escrevo no ar um punhado de emoções sinceras.

Hoje me ocorreu um questionamento novo: quanta espera realizamos durante um dia inteiro? Eu tenho necessidade de fazer pausas. O meu corpo pede e eu obedeço. Eu me lembro que na infância, o olhar travava em nada e tudo parava. Eu não me mexia, não respirava: inexistia. às vezes, ainda acontece, mas está cada vez mais raro. Mas, no meio da tarde, sinto vontade de bebericar uma xícara de chá ou de preparar uma receita de pão e eu sei que o efeito é o mesmo. São pausas necessárias, uma espécie de freio natural porque temos essa mania — estranha — de acelerar tudo. E mesmo assim, nos falta tempo…

Será que é o contemporâneo que nos demanda coisas demais ou somos nós mesmos? Quando criança, tudo era tão lento. As horas em sala de aula eram intermináveis. De um minuto ao outro levava uma vida inteira. As férias de verão na casa do nonno durante o tempo exato de um verão. As voltas dos ponteiros ocupavam-se de cada um de seus segundos… e eu me lembrava da hora cheia — que tornou-se a minha favorita — porque o carrilhão as cantava eufóricamente. Dentro da noite, eram mais sonoras e perversas. Eu dava pulos na cama, na primeira noite…

Hoje, no entanto, tudo se dissolve. Faz pouco que acordei para essa manhã de domingo e os ponteiros apressados, cospem suas doze horas… ou quase! Foi ontem que Catarina voltou a escrever e cá estou eu a inaugurar o primeiro dia de uma década.

Os minutos se atropelam. Tudo é para ontem e o hoje é essa sinuca sem tacos ou bolas nas caçapas! Para onde será que vamos? Me parece tão impossível traçar um destino nessa velocidade… Acho que é por isso que a minha escrita — que estranhamente avança para o futuro enquanto linhas azuis traçadas no papel — escapam para o ontem, esse meu pretérito (im) perfeito

Bem, preciso de outra xícara de chá e da pausa que ela me oferece…
Acompanha-me?

Mariana GouveiaObdulio Nuñes Ortega

44 – Questões há na realidade, que nunca devem ser respondidas

Marco,

Soube há pouco que o inverno chegou cedo; eu estava acordada na hora anunciada. Perdi o sono dentro da madrugada e vim para a sala ler o meu septum porque depois de folhear reticências nos últimos dias de outono, dentro desse mês que é seu-meu-nosso, precisava revisitar-me em outras datas-estações.

E ao virar a página, encontrei uma folha escrita por mim que tinha você como destino. Estava fora de lugar de deve ser um desses caprichos do destino, que parece se divertir com o espanto que provoca na matéria rarefeita que sou. Dizia ali “não pensei em absolutamente nada no dia de hoje. Deixei o dia correr sem qualquer outra lembrança de nós dois. Fui sorvendo os nossos movimentos pelas calçadas do bairro, numa lentidão típica de quem sabe que não vai a lugar algum. De mãos dadas com você, fomos a nossa padaria, ocupamos o nosso lugar, brincamos com a galera que nos atende e pedimos o de sempre. É impressionante como nos repetimos. Voltamos para casa com um saquinho de pão e a certeza de que nos falta algo e sorrimos os dois ao dizer em voz alta: um cachorro. Somos uma família, temos uma casa, mas não temos um filhote para acompanhar essa parceria que sabemos… irá longe“.

Recordei a chegada do nosso Patrick, ainda menino, tão pequenino… eu tentei avisar que ele não iria dormir sozinho na cama que você providenciou para ele. Você não me ouviu. O colocou lá e pouco depois, ele começou a chorar-uivar sua solidão. Fui buscá-lo, acomodando-o nos meus espaços, onde cresceu.

Não foi o único presente que ganhei de você em todos esses anos… mas foi o melhor. O nosso amigo de quatro patas com quem se engalfinhava na grama. A sua mãe adorava vê-lo… “duas crianças” dizia, satisfeita em vê-lo feliz de novo.

O nosso amigo nos deixou, a sua mãe não está mais por aqui e muita coisa mudou a nossa volta. Mudamos de casa-apartamento. Eu fui e voltei de muitos lugares-cidades-países. Escrevi o meu romance e inventamos a Scenarium que era para ser apenas coisa minha-mínima. E ganhamos uma cachorrinha, a que nomeei Jane dog… que te elegeu o humano favorito dela. Alguém com quem compartilhar o carinho que tenho por ti.

Nossa história tem vários capítulos… começou em dois mil e dois, no ano seguinte o amigo virou amante e depois de tantas voltas ao redor do sol e de nós mesmos, seguimos sendo o que somos: amigos e amantes de silêncios e diálogos, olhares e gestos.

Sigo amando unir as minhas mãos as tuas e sair por aí… somando outonos! Amo-te

Tua,

43 — Praticamos o nosso modo coffee talk

Meu caro,

Viajei no tempo e espaço durante a nossa conversa, no meio da tarde, quando fugi para a cozinha a fim de combinar ingredientes e te surpreender com aromas. Você chegou antes… com a desculpa de sempre: lavar a louça.

Eu gosto imenso quando chega-fica… e fala de coisas suas, como se enroscasse as suas histórias às minhas, formando um emaranhado de coisas nossas. Me diverti ao saber seu irmão preso no alto… agarrado as cortinas. E sua mãe a implorar para que o tirasse de lá. Tenho para mim que ela se divertia secretamente com a cena, tanto quanto você…

…eu fui uma criança quieta. Não tinha vocação para traquinagens. Preferia passar o meu tempo livre… trancada no quarto, com os livros e cadernos. Adorava quando chovia. Ninguém me pedia para sair de lá.

Quando fazia sol era motivo para ir para o quintal, colher frutas, tomar sol, andar ruas, visitar praças, ver pessoas. Em algum momento alguém sempre perguntava: ‘não quer ir brincar com as outras crianças na rua?‘. Eu respirava minha generosa porção de ar (a qual tinha direito) e cambaleava até lá. Eram as mesmas brincadeiras de sempre… as meninas com suas bonecas e o meninos com a bola de pé em pé.

Eu procurava e encontrava um canto para mim… e de lá ficava a apreciar os movimentos das pernas dos meninos… das mãos das meninas. Do rastro de poeira que o sol deixava no ar. Das asas da farfalla e das nuvens pelo céu.

Vez ou outra, aparecia um adulto (a mãe de alguém) com um jarro de suco e um prato de sanduiches. Formigas no açúcar. Eu não me movia… apenas tapava os ouvidos para evitar a gritaria. Agradecia, como fui ensinada… e recusava. Não comia nada que fosse oferecido por estranhos.

Certa vez ouvi a conversa de duas vizinhas-mães… ela nem parece criança, deve ter algum problema. Está sempre quieta-triste. Não corre. Não brinca. Não come nada que a gente oferece. Deve ter alguma doença misteriosa. É melhor mesmo que não se misture, vai saber o que pode ser…

Minha doença (nada misteriosa) era não ser igual… eu adorava subir em árvores, alcançar o telhado, escalar muros, pisar poças, colher folhas, virar páginas de livros, rabiscar palavras em pequenos pedaços de papéis perdidos… e mergulhar em rios. Mas eu era uma aventureira solitária que não gostava de testemunhas. A solidão era a minha melhor amiga.

E o que gosto em ti é essa necessidade de lugar conhecido-nosso… solitário. A mesa da cozinha para dois. A última hora do dia. O primeiro sorriso da manhã. Mãos dadas por ruas vazias e qualquer coisa de silêncio em algum momento do dia.

Au revoir

42 — Ignoramos ser no horror, que forjamos nossa mortalha

Cara colecionadora,

…a quarta-feira demorou a amanhecer dentro dos meus olhos… meu corpo parecia disposto a recusar o dia e suas cores insistentemente claras. Me pus de pé! Alonguei braços-pernas-dedos-pescoço…  e foi às ruas! — passos lentos… um depois do outro, contados, como quem marcha: esquerda-direita… esquerda-direta… folha-pausa… ops

Como de costume… comecei a escrever assim que passei pelo portão do prédio e as linhas foram se acumulando em meus olhos à medida em que atravessava ruas e dobrava esquinas… até o ponto. O Coletivo demorou a passar… e eu gosto dessas esperas. Me permite apreciar a realidade em suas horas mais estranhas.

De dentro do ônibus… apreciei esse novo trajeto: rua acima, curva a direita, a esquerda… uma pequena praça sem bancos e um combinado de prédios antigos, amarrados uns nos outros. Eu os observo como se fosse a primeira vez, buscando por detalhes que a visita anterior deixou passar. Alguma coisa sempre se perde porque outra acena e lá vou eu…

Hoje eu prestei atenção nos nomes dos edifícios fincados na rua com nome de pedra preciosa (topázio) — e tentei entender as escolhas feitas: Aída, Otero, Faust, Montreux, Ernani, Alfa, Vila D´Este. Lembrei-me de uma amiga sagitariana que gosta de café, toca um instrumento e é parte de uma orquestra no interior de São Paulo…

Foi algo rápido… uma espécie de flash disparado no ar para uma fotografia qualquer no tempo de ontem. Depois disso, me distrai ao imaginar um personagem-meu a viver no primeiro andar e migrei para lá. Vivi alguns minutos entre os cômodos, sentei no canto do sofá e me incomodei com a quantidade de móveis espalhados por toda a sala. É um desses apartamentos antigos, com mobília escura-pesada e antiga que nunca saem do lugar.

Eu preciso desses elementos urbanos para criar-existir. Gosto imenso de identificá-los e tê-los em minha escrita. Há algum tipo de satisfação em descrevê-los… sabê-los, como se estivesse a traçar mapas de vivências a partir das coisas que experimento. Toda vez que começo a pensar em uma persona, busco por um lugar para eles. Um cômodo-casa-corpo. Sem isso, não existe narrativa. Preciso saber o lugar em que viveria, os móveis que escolheria, o canto preferido, o tipo de louça e se gosta da pia cheia ou vazia. Faz toda a diferença para mim…

Bem, eu vou saltar no próximo ponto… e preciso por fim a essas linhas. Inaugurar-me em colheita de outros elementos-ingredientes para a minha escrita. Vou percorrer meio metro de Avenida Paulista… Você vem?

Au revoir

    

38 — Um tempo para anoitecer à luz de lâmpadas

Cara M.,

Vim me sentar  na varanda com alguns rascunhos antigos, em mãos. Xícara de chá ao lado e as janelas dos prédios da avenida com nome de pássaro como cenário. Há poucas luzes acesas nessa noite de domingo. A maioria exibe um brilho típico de televisão acesa…

Eu gosto imenso de perceber o passado que deixei escrito em algum lugar. Revejo cenários, pessoas e revisito cada movimento que precipitou qualquer coisa em mim.

Às vezes, o meu corpo é um rascunho que precisa ser passado a limpo porque eu escrevo por dentro — uma espécie de tatuagem invertida. Eu sei que isso não é novidade para você.

Mas foi um desses rascunhos, escritos no fim de uma manhã de outubro de 2018 que eu encontrei… Eu estava sentada na mesa coletiva da Starbucks da Alameda Santos, com envelopes e folhas avulsas espalhadas. De tempos em tempos eu recorria a um gole de latte, uma espécie de placebo a impulsionar a minha escrita.

Eu queria lhe contar dos labirintos urbanos percorridos a bordo de um Coletivo que mudou o seu caminho habitual, naquela manhã, transformando a minha viagem habitual em outra.

Mas a minha narrativa acabou interrompida repentinamente — o parágrafo ficou pelo caminho, não foi pontuado, apenas deixado no meio da linha. Eu precisei revirar a memória e outros tantos escritos para descobrir o que houve.

Uma senhora ocupou a cadeira ao meu lado… E fomos gentis uma com a outra… trocamos acenos rápidos e silenciosos como faço quando alguém se aproxima da mesa coletiva que ocupo. Mas, dessa vez, algo inédito aconteceu. Eu a reconheci… era uma personagem que sequestrou o meu olhar e sentidos e eu desconfio que lhe falei a respeito dela… que passei a investigá-la, atraída que fui por um medalhão vermelho que carregava no centro do peito…

Ela passava por mim todos os dias, no mesmo horário, com suas roupas escuras, uma bolsa a tiracolo e aquele enorme medalhão dourado, que parecia pesar mais que o seu próprio corpo miúdo.

O meu imaginário teceu várias narrativas impossíveis para aquele objeto dourado que sustentava uma pedra. E a figura dela contribuiu para isso porque parecia que havia saído de um dos contos dos irmãos Grimm.

Mas, sentada ao meu lado, ao alcance do meus olhos, não percebi misticismo algum nela. Pelo contrário… Era apenas uma mulher velha, quieta e moribunda. Respirei fundo e lamentei tê-la tão perto… É bastante comum acontecer, por isso, prefiro que os personagens se mantenham dentro de uma pequena distância, a salvo da realidade. O meu imaginário é tão mais gentil…

Você se lembra da reação de Raissa quando se depara com Anne Letrech e se encanta por aquela figura misteriosa que emerge bem diante de seus olhos. Mas, assim que percebe que ela caminha em sua direção, entra em pânico e foge.

Admito que eu deveria ter feito o mesmo: recolhido as minhas coisas e ido embora. Mas eu fiquei e ainda hoje lamento por isso.

Eu que nada sabia a respeito daquela mulher… descobri minutos depois que se chamava Cecília porque todos que frequentam aquele Café, tem seus respectivos nomes “cantados” pelo Barista que prepara e nos entrega a bebida.  É como estar de volta à sala de aula, quando nossos nomes eram citados – completos – durante a chamada feita pelo professor.

Cecília não se manteve em silêncio por muito tempo, cara mia. Achou fascinante se deparar com alguém da minha idade em meio a envelopes e folhas de papéis, a escrever missivas. Disse não imaginar que ainda existia pessoas dispostas a trocar correspondência.

Eu não disse palavra… Cecília, no entanto, desandou a falar de si e de seus correspondentes num tom monocórdio… todos mortos — afirmou com algum pesar. Eu engoli um pesado gole de latte tentando não pensar-reagir aquela fala. Mas foi impossível não perceber que a morte da qual falava, era outra. Não a que leva os seres para outro mundo.

Ela falava de abandono, desistência… de envelopes esquecidos dentro de uma caixa, escondida no fundo de um armário, de gavetas fechadas. Cartas não respondidas e algumas escritas e não enviadas.

E eu cá, nesse futuro dois mil e vinte e dois, noite de domingo, céu nublado, sentada na varanda… a lidar com uma correspondência não-enviada. Eu tenho muitas missivas nessa condição…

Mas, naquele dia, ao olhar para ela, uma segunda vez, reparei que estava sem o medalhão. E, por um instante, oscilei em incertezas. Quase questionei a ausência do objeto. Mas não sou dada a pergunta, você sabe.

Ela se levantou, desejou-me um bom dia, deitou o copo branco no lixo e foi embora. Eu tive a sensação de que não mais a veria e foi o que aconteceu.

Fosse uma história de minha autoria… ao me levantar para ir embora, encontraria o medalhão, abandonado na cadeira. E ao passar pela porta do Café receberia a notícia do Fim, ocorrido poucos minutos após a minha chegada. Mas, a realidade insiste em não me surpreender… com suas narrativas monótonas.

Ao menos essa correspondência, deixará a condição de não-enviada e seguirá até você.

Au revoir

b.e.d.a — blog every day august — um desafio que surgiu para agitar os dias
de abril e agosto nos blogues e comemorar o Blog Day

Alê Helga – Mariana Gouveia – Mãe Literatura 
Obdulio Nuñes Ortega – Vanessa

Projeto 52 missivas

Não perdi o hábito de escrever diários

35 — Não há outra verdade que se possa contar

Para M.,

Escrevo-te na primeira hora deste domingo-primeiro de abril… Tive um sonho agradável na noite que passou e acordei com vontade de sentir o chão debaixo dos meus pés. Nunca fui de andar descalça, como você. Incomoda-me sujar os pés. Mas, essa vontade floresceu em mim…

Tem acontecido com certa frequência… vontade de água fria no rosto, latas com quadradinho de bolo ou biscoitos de nata. E reparei que tenho sentido falta de algumas coisas; dos nossos diálogos insanos, que durante algum tempo ecoaram em mim. 

Você chegava com sua forma peculiar de estabelecer contato e me chamava de “senhora”. O tom que usava era melindroso, típico de alguém que gosta de pautar a realidade a partir de suas ironias particulares. Ainda ouço o som da sua gargalhada explodindo no ar.

O que provou esse diálogo solitário… foi uma missiva que os Correios devolveram, acusando erro de remetente. E como eu não acredito no acaso… a guardei para um dia seguinte qualquer e pronto… 

Eu revirava o meu baú  na tarde de ontem. Procurava por uma coisa e acabei por encontrar outra: você… Fazia tempo que não pensava em sua figura, que vez ou outra, insurge em minha realidade; feito um vento indócil… batendo portas, fazendo voar cortinas, papéis… 

Mas eu sei das muitas coisas que você não disse. Foi através dos seus silêncios que fiz de você uma figura minha… uma personagem que emerge do meu passado. Eu demorei para compreender o seu lugar, as suas falas… ações e reações. 

Algumas coisas suas, me intrigaram…
Fiquei algum tempo sem saber onde ancorar os meus navios.
Durante muito tempo, você foi apenas uma página em branco… onde deixava palavras pela metade. Frases soltas — inacabadas e sem sentido possível. Vogais e consoantes em desarranjo pela manhã, no meio da tarde, começo de noite-madrugada adentro… 

Eu não conseguia desmistificá-la. 

Eu bebia um pesado gole de chá quando o meu olhar — feito um diafragma — captou a sua figura. Percebi a fragilidade que tentava esconder. Cerrava o punho quando a dor era insuportável e inventava fugas. O cigarro era um aliado. E as palavras que soltava no ar, eram como as pesadas baforadas que deixava a sua boca… 

Reparei que quando saía da toca, era outra, uma persona inventada para quem se aproximava. Uma espécie de camaleão… um ser em metamorfose completa, com o personagem de Kafka. 

É um talento e tanto, admito! Reconhecer o que o outro vê e se oferecer a esse molde-temporário. Penso que somos parecidas! Eu me misturo aos meus personagens, de tal maneira que, ao regressar deles, levo algum tempo para me reorganizar. 

Mas, na condição de cigana que finge ser, precisava de respostas e como não traço mapas, não sabia onde fincar o seu alfinete. Me diverti com as suas buscas. Sua tentativa de adivinhar-me. Parecia estar à espera de minhas mãos abertas para ler cada uma de minhas linhas. Eu tentei alertá-la… não me importo com o que os outros veem em mim. Você forjou um riso falso nos lábios e recorreu ao cigarro mais uma vez. 

Ao voltar, exibiu-se inteira-plena — uma Lua cheia. Por um minuto ou dois… foi a Senhora de si, num jogo em que pensava conhecer as regras. 

Tudo isso acariciou o meu imaginário… e eu experimentei uma curiosa sensação. Como se a conhecesse de outros lugares-corpos-tempo. Alguém que vai e volta de minha vida-realidade. Por enquanto ainda não voltou, mas em algum momento isso irá acontecer. É impossível para pessoas como nós, escapar das artimanhas da realidade.

Au revoir. 


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Alê HelgaDarlene Regina Mariana Gouveia
Mãe LiteraturaObdulio Nuñes Ortega

29 — Dentro do silêncio, mais silêncio

Carissima M

Sento-me neste ‘meu canto do mundo’ — para onde escapo… em busca de paz. Respiro fundo, fecho os olhos e pronto… Uma espécie de halo se forma na realidade e eu mergulho no Abismo que sou! Na pele acontece a simbiose… Sou uma substância que sofre alterações a cada novo segundo: não sou mais o que eu era ontem e ainda não sou o que serei amanhã e gosto desses intervalos entre o tudo e o nada, é justamente quando escrevo.  

Ouço Mercedes Sosa em minha memória— ‘todo cambia’ — enquanto re-visito suas linhas — ainda frescas em minha memória: é como se eu te oferecesse meu quintal, minhas histórias e recebesse de volta suas janelas, o cheiro de pão de sua cozinha e assim, nos conectamos

Fecho os olhos, me afasto de sua escrita e fico dentro da canção… sinto o efeito da música na pele: ‘cambia, todo cambia — cambia, todo cambia — cambia, todo cambia’… que parece suor a varar os meus poros:

Volto a realidade da paisagem com seus prédios empilhados ao longo da alameda e repouso em meus vazios. Passei alguns dias sem escrever uma única linha, sem ocupar-me desse cenário enquanto escritora que finjo ser, em alguns momentos. Às vezes, faz tanto barulho do lado de fora que fica impossível alcançar o silêncio de que necessito.

Hoje, acordei com o som das maritacas, na árvore da frente e o som dos aviões que, ao decolarem, cruzam os ares com os motores cheios. Apoiei o corpo na estrutura de ferro pintada de vermelho sinto falta de uma xícara de chá — ontem tinha cidreira e hortelã na banca de ervas. Espiei de passagem, mas não trouxe para casa. Coloquei a chaleira no fogo… pensando nas cores dos seus quintais e voltei quando o apito gritou pelos ares. Bebi pequenos goles de um chá que vem em saquinhos. Não é a mesma coisa. Fui sentindo os percursos do líquido-ar… Gosto imenso desse instante sagrado de tudo e nada. Uma pausa em todas as coisas demasiadamente humanas.  

Ao ler a sua missiva na manhã de ontem… fiquei a pensar na pessoa que sou quando escrevo. Eu me multiplico, mudo de nome-identidade. Sou tantas… E pensar que as pessoas analisam Pessoa em busca de resposta para a sua multiplicidade. Não tenho necessidade alguma de entendê-lo enquanto pessoas. Sinto em seus versos — tenho preferência por Álvaro de Campos — a figura primordial que escorre por sentidos-sentimentos e tantas outras coisas. Um preparo natural para o próximo. É como escrever um livro primeiro e ir melhorando a narrativa aos poucos para o próximo até que seja o último.

Meu Lado B., escreve sem anseios, eventuais preocupações, freios, repreensões. Apenas escrito natural… sem compromisso algum com a realidade e suas academias. Gosto e preciso desse escrever livre — sem amarras, solto no ar-espaço-tempo. Uma frase escapa e eu refaço os meus mapas particulares. Narro minhas vivências-conflitos-dúvidas… ralho com meus desaforos! Afronto vontades-desejos. Dou risada de meus questionamentos e das perguntas que não preciso fazer por não estar interessada em obter respostas. Gosto do impossível… do não saber.

Gosto imenso de escrever-me, sabendo que se trata de um diálogo com alguém, feito uma garrafa atirada no mar, com um bilhete dentro. Alguém há de encontrar e percorrer o caminho de volta.  Se chegar até você, hei de saber!

Au revoir

27 — Pedras no caminho de ninguém

São Paulo, mais um ontem que vai longe…

Meu caro,

Hoje eu escrevo desse meu novo cenário… Cores e sombras se multiplicam pela paisagem. Estou gostando desse “retângulo” com móveis e tapete marrom na porta. Eu queria um vermelho, mas não consegui encontrar. E você sabe como tenho pouca — ou nenhuma — paciência para compras. Aborreço-me facilmente…

Ao voltar para casa, me deparei com um desses mercados de bairro, com caixas de fruta empilhadas ao lado da pequena porta na calçada e acabei por recordar a nossa infância. Resolvi experimentar uma antiga receita de pães, guardada no sótão da memória. E fiquei feliz por perceber que ainda sei misturar ingredientes.

Eu achava que jamais iria me esquecer de certas coisas. Mas começo a duvidar disso porque algumas coisas não estão mais em mim. Momentos inteiros, pessoas, lugares… Não estão mais nítidas como como antes e temo que a qualquer momento, tudo desapareça. No outro dia, precisei fazer enorme esforço para lembrar o desenhos de alguns rostos…

Enquanto esperava pela fornada de pães, meu caro… fui buscar o livro de Whitman na prateleira. O descobri graças ao signore Campos que o citou em um de seus poemas. Que descoberta meu caro. Tenho para mim que iria gostar de leaves of Grass/folhas da relva. É um exemplar bilíngue, emprestado da Biblioteca Mário de Andrade — creio que tenha lhe falado desse lugar-cenário paulistano.

O bom do livro em dois idiomas… é que me permite insistir nesse idioma que, às vezes, me causa certo cansaço. É uma confissão que faço. Sei que não te surpreendo: vivo perdida em sons e algumas palavras, simplesmente, não fazem sentido algum, em minha boca, quando pronunciadas. Chego a evitá-las por considerá-las qualquer coisa que eu mesma não entendo. Acho que por isso embalo o silêncio… Todos os idiomas tem bélissimas palavras, mas um sem-fim são desnecessárias por serem opacas-rasas… tolas!

“gingando pela calçada ou trotando por estradas rurais eu vejo rostos, / rostos de amizade, precisão, cautela, suavidade, idealismo, / o rosto espiritual previdente, o sempre bem-vindo rosto comum benevolente, / o rosto de quem canta, os rostos ilustres dos advogados naturais e juízes de costas largas, / rostos de caçadores e pescadores, sobrancelhas salientes… o rosto pálido e escanhoado dos cidadãos ortodoxos, / o rosto puro e extravagante e ansioso e interrogativo do artista

(…) Walt Whitman (trecho de “rostos/faces” – folhas da relva/leave of Grass)

Whitman com seus versos, me fez questionar a minha escrita. Ainda estou em dúvidas quanto as minhas escolhas. Faz três anos, meu caro… e ainda não escrevi o meu primeiro romance. Sei o que você pensará ao ler isso: nunca se preocupou com o tempo, sempre viveu alheia a ele. Tens razão! Mas, nesse caso, pesa…

Meus escritos são erráticos e a maioria não passa de rascunhos para serem esquecidos em gavetas. Estou a espera de descobrir a história que eu quero contar. Mas, por enquanto, parece que estou experimentando realidades alheias. Descubro personagens aqui e ali, mas nada me atinge em cheio, feito um raio.

Queria que estivesse aqui para conhecer T. — uma dessas figuras curiosas que me faz questionar se ele é real ou imaginário. Talvez pudesse me ajudar com isso. Na semana passaeu quase tive certeza. Mas, ocorreu um fato novo-estranho… e pronto. A dúvida voltou a habitar a minha pele. Ele tem paixão pela cultura mexicana e pelo festival dos los murtos. Quer fazer algo parecido aqui em São Paulo e sempre que se encontra comigo, delira a respeito. Eu quase contei a ele de nossa visita ao México — isso foi coisa sua… uma dessas viagens sem mapas-horários. Como se mudar de país fosse o mesmo que ir ao armário e escolher uma roupa para sair.

Sinto falta disso, meu caro!

Vou colocar a chaleira no fogo para apitar… e voltar para o canto do sofá, com o meu livro para apreciar as mudanças da estação. Sinto no ar qualquer coisa de “outono”. Se bem, meu caro, que as estações do ano por aqui, não passam de rumores. Você sente a mudança no ar, num minuto e no outro… acabou! Coisas da paulicéia nada desvairada do seu Mário…

Au revoir

26 — Em longas frases, digo coisas particulares, de nós dois

São Paulo, um ontem que vai longe…

Caro mio,

…nada sei de tuas paisagens a essa hora. Mas eu gosto imenso de imaginar o que é paisagem em teus olhos. Venho até a janela e vigio diferentes direções. Persigo um pássaro em seu vôo por cima das coisas e me distraio com o caminhar lento de um rapaz, iluminado pelo forte sol desta tarde. O feriado deixou tudo tão lento, para depois.

Levo o copo à boca para mais um gole de água e penso nas coisas que chegam ao seu olhar. O que se perde e o que guarda? Não consigo pensá-lo como uma criatura distraída. Mas sei que sua atenção é restrita. Não é tudo ou qualquer coisa que o atrai.

Imagino você abrindo cortinas impregnadas de muitos ontens e o seu olhar passando pelo vidro e alcançando o mundo. Mas não esse que vive do lado de fora. Você olha para dentro e espia tudo que vive-fez. Sente saudades de alguns personagens e acaba rindo com lembranças que aquecem o seu viver. Concordamos que é bom sentir saudades. Seria impensável não ter nada de importante para lembrar, em determinadas horas.

Eu sempre me lembro da chegada do Panther… esperei por ele durante meses. Era um lindo cão da raça Fox terrier. Ninguém o queria por não ser perfeito. Não sei como chegaram a essa conclusão absurda. Ele era + que perfeito. Eu nunca entendi as manias humanas e seus adjetivos erráticos. É algo que temos em comum e a risada… que espoca no ar, como rojões na última noite do ano.

Somos feitos de lembranças e o nosso mundo vai sendo preenchido-ocupado por elas. Vai fazendo sentido, ganhando forma, feito o barro que ao toque das nossas mãos, vira um vaso para ser preenchido com água e flores.

Nada sei de tuas paisagens a essa hora. Nem sei onde vive, em que lugar se esconde. Nos encontramos numa dessas artimanhas do destino. Uma colisão de mundos-universos. Nada programado… por nós dois.

O relógio marca suas quase quatro horas de um dia insuportavelmente quente. Tudo arde por aqui. A paisagem banhada de sol perturba os meus olhos — sensíveis à claridade. Aperto-os para observar as dezenas de janelas que tenho por aqui… como se você estivesse em uma delas.

Percebo seus movimentos lentos pelos cômodos de uma casa qualquer… com mesas, sofás, portas e pequenos objetos espalhados ao longo dos cômodos. Escadas com degraus contados a exaustão… e seu passo avançando em busca de um canto onde acender o seu maldito cachimbo.

…nada sei de tuas paisagens a essa hora. Mas olho lá para fora e sei que se esconde por trás de uma dessas janelas para onde aceno e deixo por conta do imaginário a resposta.

| escrita ao som de you´ve got a friend |

Mariana GouveiaObdulio Nuñes Ortega