01 | * À beira das palavras… um gole de café

 
* verso extraído do livro (in)versos, de Suzana Martins

para ler ao som de Chuva no mar

O tempo é a qualidade dos tempos porque nos foi dito:
“Fazei isto em memória de mim”.

Maria Gabriela Llansol


Faz algum tempo que não me oriento através do calendário-relógio. Não me importo com o que dizem os dias-horas. Se segunda-terça — setembro-outubro, tanto faz. Eu não sei o lugar certo dos dias ou dos ponteiros na realidade dos outros. Misturo tudo e pronto. Me perco, me afasto e me divirto quando alguém tenta me posicionar porque alguém sempre anuncia a hora disso ou o dia daquilo. Eu não sei quem fez as reservas, mas desconfio não haver um único dia nos calendários dos homens sem um destino.

Mas eu sou movida pelo som oco que emana de dentro da caixa-corpo-peito… É o que determina certos rituais de existir. O som da máquina de expresso. Das páginas dos livros. O apito sonoro da chaleira. E da monótona melodia oca do velho carrilhão, que ressoa da minha infância… um susto, dois sustos, três sustos invadindo sem cerimônia algum aos dias contemporâneos.

Não sei se passo tempo demais dentro dos livros que leio ou a bordo dos escritos que transcrevo a partir das emoções que provoco-invento… O fato é que vivo ausências pontuais, o que incomoda certas figuras severas e movidas a realidade, onde tudo tem regras e valores, pesos e medidas, certo e errado. Ok. Acho que me fiz entender…

Ao começar a escrever esse texto — em movimento pelas calçadas da cidade — lembrei que houve um tempo em que algumas coisas tinham o seu lugar no tempo-e-espaço. Eu sabia quando era quinta porque era dia de fazer uma receita de bolo lá por casa. As manhãs de sábado eram uma espécie de endereço, caso eu tivesse que dizer a alguém onde eu residia…

Ah, e novembro era o tempo dos novelos de lã… usados para confeccionar as luvas para o inverno. Como eu era uma figura-miúda, em fase de crescimento… as do ano anterior, dificilmente servia, no ano seguinte.

Acontecia novembro e começava a dança das agulhas e das caixas com fios em laços e voltas, contornos e retornos. A mesa da sala ficava cheia e enquanto as signoras confeccionam luvas… nos entretinham com as histórias de suas infâncias. Desconfiam pelo sorriso que surgia faceiro nos lábios, que elas voltavam a ser crianças.

Nesse novembro [entre outras coisas] vamos de #blogvember…
Aventuram-se em linhas diárias: Mariana Gouveia,
Obdulio Nuñes Ortega, Roseli Pedroso, Suzana Martins

16 respostas para ‘01 | * À beira das palavras… um gole de café

  1. :.tossan®

    Texto formidável e se casam como uma luva, não, uma seda que é mais suave! Novembro é o mês do meu aniversário (17), portando me senti no contexto.

    Beijo moça talentosa…

  2. Luciana (borboleta)

    Eu quero me esquecer em escadas, ah, eu quero. E ganhar pó de pirlimpimpim e deixar mágicas minhas palavras… diz aí, como faço?

  3. Maria Claudia Martins

    Eu percebi novembro chegando, mesmo porque lembrei-me de alguém que havia me dito que iria escrever todos os dias de novembro…rs.
    Viajei para minha casa onde passei boa parte da minha infância, quando eu e meus quatro irmãos ficávamos sentados nos degraus da escada que ficava em frente a nossa casa, cada qual no seu degrau, esperando o nosso pai chegar do trabalho, para vermos no rosto dele aquele sorriso lindo que ele tinha, como também sempre tinha em mãos algum pacote que trazia cheio de guloseimas, para nós crianças, que adorávamos…era sempre uma festa e isso acontecia todos os dias.
    Tuas palavras como sempre me levam para um tempo que não esqueço jamais e posso dizer que ainda o vivo no dia de hoje. Meus amigos me dizem a todo momento que é para eu parar de viver do passado…rs…mas como posso fazer isso se principalmente lá… fui tão feliz. Faz-me tão bem reviver tudo isso e aqui com você isso sempre acontece…rs.

    Obrigada mais uma vez caríssima amiga…:)
    Bjinhos no coração

  4. Lis

    Oi Lunna
    … esse é o nosso novembro. Eu tenho o mesmo sentimento de que nele começa e termina o ano. Passam-se as estações uma a uma. Novembro chega fechando ciclos ou apenas a triste constatação somam-se outros mais e só..
    Sua infância de certo foi mais bonita que fez de você essa lindeza que costura palavras com seu novelinho de lã. Do lado de cá muita introspecção as bloqueou, só permanecendo na pupila dos olhos.

    Uma delícia ler-te.E devanear com seu belo poema,
    fica o abraço carinhoso

  5. Maria Mdlej

    Olá!
    Parei por acaso por aqui e já li uns três. Vim comentar nesse, porque falar em novembro mexe muito comigo, porque também considero “meu mês’. Por ter nascido nele e sempre acreditar que os ciclos se encerram e iniciam junto a novembro.

    Adorei ler isso aqui!
    Um beijo!

  6. Leitura Enigmática

    Notei que novembro é um mês nostálgico para você. Eu gosto dele, pois está próximo de Dezembro, um mês que fecha um ciclo de 365 dias em que posso fazer um balanço de todas as coisas que se passou comigo.

  7. Neiva

    Caríssima Lunna, que escrito mais gostoso esse seu.
    Fiquei aqui respirando fundo a cada linha. E olha que li duas vezes. Que ritmo gostoso. Que sensação mais aconchegante, parecia que estávamos as duas a contar histórias uma para outra. Eu fui falando pra você das minhas coisas que eu já não lembrava mais e você as suas, me fazendo reviver as lembranças. Lembrei daqueles dias junto a minha mãe descascando cana no terreiro, sentada numa lata de óleo grande. Ela falando com as vizinhas. Eu ouvindo e vivendo. Eram dias bons, como os seus sentada na escada a esperar.

    beijos menina Lunna

  8. Flávia Côrtes

    Sou uma das pessoas que apontam dias e afins, mas obviamente tenho ajuda da minha Agenda Google onde anoto as datas recorrentes e compromissos mensais ou anuais (no caso dos aniversários de meus afetos). E na minha agenda… os aniversário estão sempre em VERDE, porque lembra natureza e o poema ESPERANÇA de Quintana. Nele ele chama a esperança de “meninazinha dos olhos verdes” e tenho, há anos, esse poema de cor. Bem… isso foi só pra dizer que lhe acompanhar todos os dias de novembro será a minha forma de fazer a contagem regressiva que faço para os que me são mais caros na vida: meus afetos! Não vou dizer que faltam X dias para celebrarmos o dia de sua estreia na vida, porque não significaria nada pra você ou nesta nossa relação, cujos laços são estreitados dia a dia, com muito respeito e cuidado. Uma leitura atenta faz muito mais sentido! Bacio, cara mia!

Pronto para o diálogo? Eu estou (sempre)