02 | seremos deuses de cada dobra escura

* verso extraído do livro Liláses, de Obdulio Nuñes Ortega
PARA LER AO SOM DE ORAÇÃO AO TEMPO

Eu nasci entre anciãos… e talvez por isso sempre me considerei igual a eles. Nunca soube conviver com pessoas de pouca idade. As crianças e seus porquês me aborreciam. A juventude com suas inquietações me perturbavam. E a tal fase adulta-inaugural nunca se adequou à minha pele.

Gostava de me sentar na poltrona da sala e dialogar com o nonno. Ouvir suas vivências antigas — tinha a sensação de que ele falava de outros universos, paralelos ao meu. Tantas experiências e era tudo tão palpável. Aprendia muito com suas narrativas de olhares e corpo cheios.

Quando falava de seus dias de menino… o olhar exibia um brilho de quem soube viver e aproveitar a infância. Subir árvores, mergulhar rios, colher frutas do quintal-vizinho e correr campos. Por alguns poucos minutos — uma volta inteira do ponteiro menor — tínhamos a mesma idade e experimentamos a mesma emoção.

Na juventude… a primeira paixão. Aquele olhar de sol e um sorriso lunar. Mãos dadas, num movimento inseguro que uniu dois mundos e um sem-fim de emoções desconhecidas.

Da vida adulta vieram os desafios de entender-se homem num mundo de meninos. Errou nas escolhas-primeiras. Teve tempo de corrigir uma ou outra. Eram outros tempos. E a vida não era coisa fácil. Estavam todos em guerras de ocasião e era possível escolher o inimigo da vez. Percebi que ele considerava sagrado cada um de seus tropeços. Se eu tivesse acertado em tudo, talvez fosse outra pessoa. Que coisa mais aborrecida.

Gostava igualmente… de me juntar às mulheres na cozinha e observá-las em suas danças… ingredientes necessários para suas receitas de pão-bolo-biscoitos espalhados pela mesa. Era mágico vê-las sovar a massa na mesa. Foi maravilhoso crescer ao som do fouet a misturar as claras — efeito de nuvem-neve. Rituais de vida-morte-espera-passagem…

Nunca me preocupei com as somas que faço… nasci na estranha década de oitenta. Dos excessos, cabelos coloridos e roupas elásticas. Assisti Goonies e desejei viver aventuras iguais em minha vida. Fugi de casa algumas vezes… arrumava a mochila e escapava pelos caminhos da cidade em que cresci para viver aventuras. Acabava no mesmo lugar — um bosque com trilhas bem definidas. O guarda-florestal — responsável pelo lugar — me encontrava e levava para casa — devolvendo-me aos meus.

Na década seguinte, fui a outros lugares-cidades-países levando apenas uma mochila com meia dúzia de coisas, mas a alma e o cuore transbordavam de cheios. Me perdi dos meus primeiros mapas-sonhos-ilusões… conheci pessoas. Aprendi idiomas. Mudei… de voz-corpo-pele. Era o tempo seguindo seus ciclos de décadas inteiras — rituais de uma vida com suas somas-menores. Ganhei diploma-profissão-cenário e voltei para a casa da infância. Espiei a poltrona na sala. A mesa na cozinha. Os quintais de fruta, com mesa ao sol e folhas ao vento. A janela e seu horizonte de trilhos, mar e bosque…

Revisitei a paisagem de tantos-ontens. Percorri o “perigoso” caminho das fugas. Encontrei a velha casa de pedras — ainda em pé — no meio do Bosque. E o velho apito sonoro do guarda-florestal a dizer com sua voz-rouca-sem-peso: “vamos, vou te levar para casa‘. Sorrimos os dois. Compartilhamos abraços. Caminhamos lado a lado pelas ruas de ontem. O passo dele não era mais tão ágil. O olhar, no entanto, continuava atento. Soube que era avô e que se divertia contando das minhas fugas para as duas meninas.

Quis saber se ele não tinha receio de que fugissem como eu. E ele, depois de um sorriso largo, respondeu: se for para imitar alguém, que seja você. E eu desejei que tivessem a sorte que eu tive, de encontrar um homem em que confiar o passo, a voz e o cuore. Ele foi um dos poucos heróis. Talvez o único… E se lembrava de minhas fugas, muito melhor que eu.

Refiz o caminho de casa até a escola… Passei pela praça onde os velhos-homens jogavam xadrez, nas mesas de cimento. Eu passava por lá e sentia um forte desejo de romper com os estudos e fazer companhia a eles. Foi o que eu fiz, certa vez. Tinha uma década de anos — idade suficiente para seguir sozinha por aquela trilha conhecida.

Deixei a mochila no chão e me ofereci a um signore na condição de sua adversária. Recebi dele… as peças brancas. Jogamos a manhã toda. Ele me falou de sua trajetória de homem. Quase oitenta, bambina. tenho filhos (quatro) netos (oito) e uma bela donna. Eu soube como se conheceram. Do namoro e do medo que sentiu na véspera do pedido. Da alegria ao vê-la entrar na Igreja cheia. Da felicidade que experimentou ao saber do primeiro filho e tê-lo em mãos. Dos desconfortos que os tempos de horror causaram. Dos amigos mortos e da certeza que foi feliz na maior parte do tempo.

Eu empurrei a peça em direção ao Rei… anunciei cheque e interrompi o jogo. Eu não queria vencê-lo. Apenas jogar. Ele sorriu seu descuido e o meu apreço pela narrativa. Não é sempre que se pode contar a própria vida… ainda mais a uma menina, quantos anos tem? Agradeci pelo jogo. Deitei um beijo naquele rosto enrugado, peguei a mochila e fui para a escola. Eu era nova demais para algumas coisas e velha para outras tantas. 

Nesse novembro [entre outras coisas] vamos de #blogvember…
Aventuram-se em linhas diárias: Mariana Gouveia,
Obdulio Nuñes Ortega, Suzana Martins

13 respostas para ‘02 | seremos deuses de cada dobra escura

  1. Catarina

    Que leitura gostosa, menina Lunna! Eu viajei pela tua infacia, juventude, vida adulta. Cheguei e parti de todos os lugares na tua companhia. E que lindo esse herói da sua infância. Por mais homens assim, confiáveis. Faz-nos falta.

    Ps. Ouvi ao som do Caetano! Que delícia…

    Abraços

  2. Neiva

    Querida Lu, seu blogue mudou de roupa e ficou lindo! E o melhor… Continua sorrindo em minha telinha acesa. Eu me “apaixonei” por Kairos, embora tenha consciência de que amo mesmo a Cronos. Mesmo assim, um dia vou deixá-los. Talvez você sinta que aos 40 o tempo deixe de existir, e, sem querer, volte aos 20.

    Beijos e sorrisos.

  3. Retipatia

    A contar seus ‘anos’… e eu aqui a contar meus ‘quase trinta’… e confesso que queria um pouco desse norte e expectativa por esse momento ‘inteiro’ da vida.
    Agora preciso ressaltar que foi inevitável não pensar em Deborah na véspera de seu quadragésimo, a deixar a casa (de dentro) em ordem… talvez um pouco da ideia de colocar pingos nos ‘i’s’, mas, acho que um pouco mais resolutivo de, fiz tanto até aqui, e ainda posso fazer daqui em diante.
    Não vou negar também que você tem seu lado madame bodeh, ao invés do giz vermelho, utiliza as palavras, sempre pintadas da cor rubra… coisa que adoro!
    xoxo

  4. Juliana Sales

    Que leitura boa esse post! Acho curioso isso de como lidamos com as diferentes gerações. E acho ainda mais curioso como eu sempre me dei melhor com a minha própria geração: quando criança me sentia perfeitamente a vontade sendo criança e convivendo com outras e a mesma coisa quando adolescente. Hoje não tenho mais muita paciência para essas idades, sempre me sinto mais “em casa” com os da mesma idade que eu, que compartilham das mesmas memórias coletivas. Enfim, adorei o post.

    P.S.: eu adorava Goonies e também queria viver aquelas aventuras.
    P.S. 2: Oração ao tempo é maravilhosa!

  5. Sandra

    Tem uma frase do Paulo Coelho que diz: ”Não existe nada de completamente errado no mundo, mesmo um relógio parado, consegue estar certo duas vezes por dia.”

    O tempo cura, o tempo trai, atrai e não volta atrás. Enquanto aos quarenta, fase boa dos “enta” eu vivo um dia após o outro sendo que consigo degustar algumas coisas com mais prazer sabe?

    Na verdade, nem sei te explicar como me sinto. Mas te garanto que tudo é um orgasmo. Misturei tudo aqui e cometi o disparate de embaralhar as letras no sentir. Culpa da autora que chama os seus leitores para sentar e tomar uma boa xícara de café para ver o tempo passar! Bacio, caríssima!

  6. Flávia Côrtes

    Que delícia de texto! Queria ter conhecido seu nonno. Nunca conheci os meus. Sabe que também costumava me achar “velha” pra muita coisa?! O engraçado é que minha infância e adolescência foram tão legais que volta e meia eu volto pra lá. Ao contrário de você, amo crianças e gosto de estar com elas. Na maioria das vezes consigo falar com elas na mesma “lingua” independentemente da idade. Mas amo também conversar com anciãos e quando o faço, me sinto como se 80 anos tivesse. Resumindo, biologicamente tenho 45, mas com uma versatilidade mental que me permite ter a idade de eu quiser… De acordo com a situação.

  7. Luciana (borboleta)

    Mas já? Não parece.
    Como sempre você brinca com as palavras com tamanha ousadia, parece que o tempo também brinca com você. Eu me vi na praça a jogar xadrez com você e a ouvir o velho homem. Escapamos juntas da pergunta. rs

    Bjos

  8. Cah

    Dizem que até Chronos foi deposto ou aprendeu a ser poeta, usando um heterônimo.
    Se bem que você prefere o outro, Kairós. Esse já nasceu poeta.

    Bacio e linda vida!

  9. Ana Claudia

    Oiii! Como vai? Eu vivi entre avós, muito carinho e dengo por parte deles! Muitos conselhos, sugestão por ser sempre grata ao que me fizerem… Sorrir…e dar bom dia! Essa é a minha vozinha, que hoje está com 91, viva, mulher de fibra!
    Mas também lidei com molecada, andava de skate, jogava bola e subia em árvores!
    É, não posso me queixar! Minha infância teve o que busco em constância na vida adulto: equilíbrio!
    Baccio!

Pronto para o diálogo? Eu estou (sempre)