Não perdi o hábito de escrever diários

Escrevo histórias do meu tempo

Quando decidi que iria escrever um romance… conclui que de todas as coisas que tinha em mente, a mais importante era a certeza que eu acalentava em meu íntimo: eu queria contar uma história do meu tempo. Ao mencionar as minhas intenções a pessoas próximas… colhi um surpreendente arregalar de olhos e um discurso negativo, que parecia pronto, tanto quanto definitivo: fosse você, eu não investiria nesse tipo de história. Ficará marcada como autora de histórias que ninguém quer ler. Veja o que aconteceu com Cassandra Rios.

E lá fui eu investigar a desconhecida Cassandra Rios — a safo de perdizes. Para a minha surpresa, descobri que ela era um importante nome da literatura nacional. Em plena Ditadura Militar, tinha abordado a homossexualidade feminina em suas histórias e acabou perseguida sob alegação de pornografia. Para o desespero de muitos, tornou-se a primeira escritora brasileira a atingir a marca de um milhão de exemplares vendidos.

E tudo isso aconteceu muito antes do tal beijogay na televisão brasileira protagonizado por Nathalia Timberg e Fernanda Montenegro. Uma linda cena na novela das nove, que causou desconforto na audiência e virou assunto em muitas rodas, onde as pessoas se sentiram confortáveis para despejar seus preconceitos e desaforos.

Na literatura, eu tinha lido tomates verdes fritos e alguns contos de Anais Nin, especialista em erotizar as relações-humanas. E dentre todos os livros escritos e publicados pela Cassandra Rios, escolhi ler As traças.

Nada se parecia com o que eu pretendia escrever. Meu foco estava na dificuldade em lidar com as sentimentalidades, em admitir para si mesmo o amor por um igual, numa sociedade em que se enfatiza casais tradicionais.

Eu queria replicar o que tinha observado durante a juventude. O olhar no espelho. O enxergar-se diferente da turba. Não ser igual num mundo de aparências e significados previamente definidos, onde hipocrisia reina soberana e as pessoas se sentem confortáveis para dizer em voz alta: nenhum pai quer um filho gay. Ninguém fala, no entanto, da dificuldade que sente um filho que precisa esconder o que sente-pensa. Disfarçar o olhar… as vontades. Crescer trancado dentro de si… tentando conter impulsos. Sentindo vergonha-medo-aflição.

A minha narrativa partia deste lugar-secreto… e os argumentos utilizados não foram capazes de me demover desta idéia. O primeiro rascunho da história acabou publicado — capítulo por capítulo — no blogue da amiga-poeta Suzana Martins… que aceitou acolher a minha narrativa em fase embrionária.

Eu ainda não estava pronta para escrever um romance e estava exercitando a minha escrita, com textos curtos, pequenos contos e capítulos experimentais. Uma das pessoas que acompanhava a publicação, entrou em contato por e-mail: “Que bom que você olhou para o outro lado e contou como é difícil ser sempre a solteirona da turma. E não é porque você não conheceu alguém ou porque nenhum homem te quis. É porque você não pode levar a sua parceira para a festa da empresa. Não deveria ser assim, mas é. Eu não sinto vergonha do que sinto, tampouco do que sou. Mas eu não tenho mais os meus pais, irmãos ou parentes porque eu escolhi ser feliz ao lado de outra mulher e não aceitei me tratar, tomar remédios ou me curar. Os amigos que eu tenho, talvez não fossem mais amigos se soubessem a minha verdade. Mas ao menos eu não vivo uma mentira como o meu irmão”.

Arquivei o texto-primeiro… e fui me dedicar aos estudos literários, disposta a retomar a narrativa quando estivesse pronta pra dar as minhas meninas o que precisavam. Ao retomar lua de papel, anos mais tarde, tinha um sem-fim de notas acumuladas, depoimentos vários e uma novidade — minha personagem-principal era uma cidade pequena e a sua antagonista era o seu contrário: uma cidade grande.


5 respostas para ‘Escrevo histórias do meu tempo

  1. Luana Souza

    Lendo esse seu texto eu fiquei ainda mais curiosa para ler seus livros, Lunna. Eu admiro tanto escritores, cada qual com seu estilo, sua forma de contar histórias. Você, em especial, me faz pensar em algo bem romântico quanto ao processo de escrita hehe (desculpa, mas é isso!). Eu tenho várias histórias que gostaria de contar, vários pequenos universos. Espero conseguir fazer isso um dia!

  2. Darlene R.

    Lua de Papel é um livro incrível e repleto de sensibilidade. Sobre essa etapa da escrita que narrou, infelizmente é bem comum essa reação das pessoas de olhos arregalados devido ao tema.
    Um enorme beijo!

  3. P. R. Cunha

    A Lunna é uma daquelas escritoras à moda antiga, artesã. Leitores ruminam, como se extasiados com um mui aprazível coquetel sabor Virginia Woolf/Sylvia Plath. À mesa, beliscam-se os aperitivos: pitadinhas generosas de Lispector, Sontag, Rupi Kaur, Patti Smith e não só…

  4. Matheus Gouvêa

    Escrever uma história é algo impressionante, não? pena que a literatura brasileira não é tão consumida pelos próprios brasileiros, mas o que importa pra mim é a idealização dos mundos que criamos em nossas mentes ❤❤❤❤

  5. Juliana Sales

    Que história interessante de se ler. E ambígua, porque fico feliz de você ter ignorado as recomendações e colocado a história no papel, e fico triste pela falta de apoio, o desincentivo e os olhares tortos para histórias é assim. E fico mais triste ainda pela moça, pelo que ela perdeu simplesmente por ser ela mesma e por querer viver o amor. Achei tocantes e fortes as palavras dela, “alguém precisa contar como é difícil …”. E há quem diga que representatividade não importa.

Se tem algo a dizer, fale agora... hahahahaha