“a palavra escrita me encarnou em um corpo onde eu podia viver. O corpo-letra. Ao fazer marcar no papel, com a ponta dura da caneta, entrei no território das possibilidades. As manchas da minha pele primeiro rarearam, em seguida desapareceram. A literalidade que assinala meu estar no mundo, fazendo de mim uma geografia em que os sentimentos escavavam quase mortes, encontrou uma mediação. Pela escrita eu tornava-me capaz de transcender o concreto, transformar impotência em potência. Fui salva pela palavra escrita quando comecei a ler — e (talvez) em definitivo quando escrevi. E — importante — quando fui lida“.
— Eliane Brum —
Não me lembro dos detalhes, aliás, de nada me lembro… o que tenho é coisa alheia. Eu acordei cedo. Era sábado. Uma manhã colorida. Primavera… e o cheiro de laranja vem em ondas do passado… que é meu, mas não vive em mim.
Fecho os olhos, respiro fundo e sinto o aroma. Vejo as cores, as formas e o cenário da cozinha. A velha mesa quadrada e os armários escuros por toda parte. As panelas penduradas. Gosto imenso de ouvir o som do aço — como sinos — quando o vento passa pela janela.
Estou preguiçosa… ainda é cedo. Ocupo o meu lugar de todas as manhãs. Eu era uma figura miúda-pequenina. As pernas balançavam soltas no ar… Olho para a figura dourada de sol e nebulosa da mulher mais incrível do mundo, que sabia abrir os olhos e acordar eram coisas diferentes em mim.
Eu ainda durmo quando recebo das mãos dela a famosa xícara de leite quente-caramelado e volta aos seus afazeres… Ela escrevia uma missiva para um de seus velhos amigos de envelope. Eu gostava de espiar os movimentos da caneta no papel, que eram como trilhos… e eu imitava o som da locomotiva em seu ritual de chegadas-e-partidas. Ela achava graça… e repetia comigo aquele som bobo cin cin pon pon, cin cin pon pon ritmado, como se tivéssemos embarcado em uma viagem-particular.
Distraio-me com o recorte de paisagens que trago dentro. Nessa idade o meu baú de perdidas chaves estava vazio. Mas o meu imaginário estava insaciável. Regresso atraída pelo som de páginas sendo viradas. Um livro de poesias. Imito os cães… virando a cabeça para espiar o título. Reconheço as letras e num esforço particular… consigo pronunciá-las enquanto palavras — repetindo-a em voz alta: Título e Autor.
C estava sempre atenta aos meus gestos… e ao contar essa história, revela que fez enorme esforço para não transbordar. Calou-se e apreciou a primeira leitura, sem me incomodar. Foi, segundo ela, o ponto de início… não parei mais. Lia tudo que encontrava… nas paredes-muros-pedaços-de-papel.
Do que eu realmente me lembro? — de um poema numa manhã de sábado, no mesmo cenário. Tenho cinco anos… e o escrevo num pedaço de papel. Chamava-se ‘felicità‘ — felicidade — e o autor falava naquelas linhas, de suas emoções mais sinceras. Depois de ler aquela espécie de lista de coisas particulares… fiquei a deriva, com a sensação de que o poeta tinha tentado arrancar beleza onde parecia não haver nenhuma. Eram coisas simples, que eu fazia todos os dias… que todos fazem, de maneira quase mecânica-natural — “escovar os dentes, molhar o rosto com água fria, enxugar na toalha felpuda, por água no fogo e preparar o café, cortar o pão, passar manteiga, abrir a janela e espiar a cidade feia“.
Fiquei um punhado de minutos a pensar naqueles versos… a sentí-los em mim. Peguei um pedaço de papel, caneta… Lembrei-me das palavras de C — a poesia é uma pausa na realidade. O poeta respira fundo enquanto fecha os olhos e sente. E foi o que eu fiz… fechei os olhos, respirei fundo e rabisquei minhas emoções. Cada vírgula era uma generosa porção de ar que leva para dentro e cada verso era algo que eu tinha escolhido guardar, como se fosse um baú de madeira.
A poesia me ensinou a ler e a escrever… a prestar atenção nas coisas feias-bonitas-alegres-tristes. A fazer uma pausa na realidade para levar uma generosa porção de ar para dentro . A fechar os olhos para conferir o que guardei durante as caminhadas. A fazer silêncio e compreender que símbolos podem ser atribuídos por outros e são. Mas os significados.. são apenas nossos.
que lindo amei o texto, eu adoro poesia. que lindo que a poesia pode te proporcionar tudo isso.
Que bonito ler sobre os ensinamentos que a poesia de trouxe. Realmente a poesia tem o poder de transformar vidas.
É maravilhoso ir além da leitura da poesia, mas senti-la em nossa alma. E você consegue perfeitamente, pois sua escrita é incrível, adoro ler suas publicações, você escreve com a alma.
Bacio
Acho fantástica a forma como você escreve, é tão único cheio de emoção, parabéns!
Nunca dei muita atenção para a poesia e lendo seu texto penso que talvez eu devesse mudar esse meu costume.
Que texto intenso! Eu me transportei para esse momento e estive lá. Muito bom!
Amo poesias! Aprendi a gostar delas com uma professora e com elas aprendi a ficar quieta também, a silenciar e a olhar para dentro de mim.
Amei o post!
Bacio
Caríssima
A poesia me fez olhar de outra maneira para a escrita.
Eu simplesmente amei o seu texto.
Adoro a escrita da Eliane Brum!!
E esta foto?! Você quer me matar??
Fiquei aqui salivando. Foto linda
Bacio
Lunna, que viagem.
Amei. Amei. Amei.
Vivi cada linha, conheci a menina e senti todas as emoções desse momento.
bacio
No fim, ninguém morre de verdade…