E abre-se o mundo por mil portas simultâneas.
Quem aparece? E outras mil portas sobre o mundo
se fecham. Tudo se revela tão perene
que eu é que sou translúcida morta.
Cecília Meireles
Cara mia,
Penso em escrever-te há dias, mas os ponteiros do relógio não sossegam e os dias no calendários avançam impiedosos. Disseram-me que Agosto era um mês empacado-lento que demorava a passar. Talvez com tanto a fazer — livros por costurar, outros por inventar e tanto por escrever-anotar-revisar-rasurar — o ritmo que dou aos meus dias faça com que o meu Agosto seja diferente dos outros.
É estranho dizer que estou sem tempo para pausas… As coisas vão se acumulando em algum lugar e eu vou deixando para depois — esse lugar inexistente.
Não há tempo — foi o que disse Cecília Meireles na última missiva envaida ao amigo Mário, em seus últimos instantes de vida. Era um lamento… não pelo passar dos dias, das horas… Para o desfecho que ela sabia estar próximo.
Não há tempo — repito em voz alta e procuro a xícara para um último gole de café. Respiro fundo e releio Cecília e sua despedida. É como se eu tivesse recebido uma sentença de não-vida, com dias contados nos dedos das mãos — cinco dias é tudo que me resta. E tudo se transforma e passa a ser para ontem — outro lugar inexistente. É preciso viver… chegar ao último capítulo-página-linha…
Uma pessoa disse-me há algum tempo — a morte é sempre gentil, avisa… ao contrário da vida. E eu fiquei existindo dentro dessa frase por alguns segundos. Fui trazida de volta à vida pelo ressoar do sino da Igreja do bairro, que apenas nas manhãs de domingo se faz ouvir.
As pessoas se preocupam com o fim — de tudo… do mundo, inclusive. Marcam datas… algumas causam delírios coletivos. Lembra-se do ano de 2012? Uma data supostamente Maia. E o tal do ano 2000 que muitos acreditaram ser o ponto final — segundo a bíblia, esse livro com tantas interpretações possíveis e impossíveis. Tudo ali depende da fé… É preciso acreditar. E eu não sou boa com isso, minha cara.
Eu já vivi muitos fins… O meu mundo acabou algumas vezes. É assim mesmo… você desperta para mais uma manhã e dá corda nos movimentos. Mio nonno, espreguiçava o corpanzil na porta do quarto, de onde avistava o seu velho amigo carrilhão. Abria a portinhola de vidro, pegava o pequeno instrumento e dava corda nas horas do dia. Eu gostava do zumbido que fazia — o som das engrenagens. Pouco depois, soava os acordes do bichano. E o mio cuore ía no mesmo ritmo — como se uma coisa dependesse da outra. Uma ilusão infantil… Claro!
É tão bonita a voz do tempo, bambina. Basta fechar os olhos para ouví-lo. Ele se referia ao cuore e eu sabia. Sorríamos juntos e de mãos dadas, com o passos bem encaixados… íamos para a cozinhar preparar o café. Naquele tempo eu não bebia do líquido escuro. Não via graça naquele sabor-amargo-ácido. Mas o aroma pela casa me fazia esticar o nariz no ar — como fazem os cães.
Adorava quando a casa inteira cheirava a café. E foi ali, na mesa da cozinha, com a porta aberta para os quintais de fruta e a manhã de sol a despontar no horizonte, ouvindo o som dos cavalos nos estábulos, do garfo afundando no feno e dos pássaros nas árvores… que eu ouvi a respeito de Kairós… um dos deuses gregos do tempo.
E ao avançar do passado ao presente — em que estou e de onde escrevo-te, penso em Caetano e sua voz ressoa — peço-te o prazer legítimo e o movimento preciso, tempo, tempo, tempo, quando o tempo for propício — e respondo a Cecília. Tempo há…
Au revoir
Nesse Agosto temos b.e.d.a — blog every day august.
Adriana Aneli — Claudia Leonardi — Darlene Regina
Mariana Gouveia — Obdulio Nuñes Ortega — Roseli Pedroso
Pausa para uma café é importante.
Que beleza de carta! Na casa de meus avós também tinha um carrilhão desses que badalava suas horas por toda a casa. Lembranças boas de um tempo que não retorna lembrando-nos que o tempo, sempre voa nos contrariando sempre.
Uau, que delícia de carta.
Estou adorando essa volta dos envelopes por aqui
Que lindo esse observar do tempo a partir de Cecília em carta a Mario e a voz de Caetano e suas referências de infância. Não tive nonno e sinto falta. Quando nasci o meu já não estava mais entre nós. Só o via em fotografias e sempre imaginei como seria colo de avô. Bem, lendo você, dá para sentir um aconchego na alma.
bisous
Suspirei…
Belíssimo texto, como gostaria de faze-lo com tanta competência e esmero assim como este.
l Bj
Nas madrugadas insones devanear entre realidades imaginárias é mesmo dos poetas e ‘loucos’. Não só de café, mas também de palavras de boas e deliciosas palavras vivemos. Gosto de olhar o mundo por outros olhos que não os de perto, e fica a sensação de estarmos juntos,
Gostei muito florzinha, Amo seus ‘tons vermelhos’, ‘seu sótão’… e hoje sou J.
beijocas
Bom dia Cara Mia, como sempre vc brinca com as palavras. Seus textos penetram na gente e como já disseram aqui, somos outras pessoas, no caso, somos J.
Bjos e um lindo dia pra vc
querida amiga, me permita repetir o que já disseram outros leitores teus.
Hoje eu sou o teu J.
Beijo.