50 — Deixei de estar disponível…

Suzana,

No final desta manhã dourada de agosto, escrevo-te ao som de músicas antigas-minhas. Tenho um repertório bastante peculiar. Hoje escolhi Simply Red para me acompanhar nesse diálogo, ditando o ritmo das palavras e do nosso diálogo.

Repito um velho ritual — deixado de lado em algum momento da vida, no meio de uma década qualquer — que foi retomado numa despretensiosa manhã de maio, entre um trovão e outro.

Sentada à varanda… com o olhar lambuzado pela paisagem de tantos ontens, acaricio os envelopes, comprados na papelaria que descobri ao caminhar por uma dessas ruas, com nome de pássaros.

Espiei a vitrine e não resisti… entrei. Fui direto à prateleira dos envelopes coloridos. Recordei pousos e vôos! E minha mão sentiu a dobra da folha e o cuidado em acomodá-la em um envelope artesanal, feito com o papel de pão. Era um ritual nosso para as manhãs de sábado.

A xícara cheia deitava no ar um rastro de fumaça-quente, aquecendo as minhas mãos. Eu fechava os olhos para sorver o aroma sutilmente equilibrado de leite-caramelo-chocolate-e-café. Do outro lado da mesa, observava-aprendia e com o passar dos dias passei a imitá-la… Com minhas consoantes e vogais engatadas umas às outras em frases alquebradas.

Infelizmente eu não me lembro da primeira missiva que escrevi… Eu vasculhei todas as velharias que acumulo na memória e nada… Apenas o meu invólucro convertido em barco a navegar num mar de águas calmas. E eu querendo provocar tempestades! Cuspir raios e trovões. Mas não há nuvens no céu azul solar. Gostaria imenso de ter em minha memória o desenho do lugar, das palavras, dos sentimentos que motivaram o movimento de linhas, a textura das folhas, o encaixe do envelope e o destinatário… Mas não alcanço o instante que escapa pelos vãos dos meus dedos. Parece um capricho da minha memória.

A sensação que fica na pele é de inexistência. Falta-me esse momento. É como se eu não o tivesse vivido. Mas tem que estar lá, em algum lugar… existindo em segredo. Quero muito essa lembrança… e o sentimento imenso que ela guarda.

Acredite! Eu pensei em inventar uma memória… Confeccionar um instante a partir de tudo que há em mim. Moldei o cenário e me posicionei diante da folha. Mas é como estourar um balão colorido com uma agulha. Perco-me da ilusão e volto a minha condição de barco a deveria, a procura de cais.

É engraçado, admito! Eu me lembro do exato instante em que deixei de escrever missivas. Era uma tarde quente de sol. Não havia promessas de chuva e eu voltei para vestindo o cansaço de uma vida inteira. Encontrei na caixa de correspondência uma dúzia de envelopes, que eu descartei na lixeira de recicláveis da cozinha, sem reparar nos remetentes. Estava sem vontade-ânimo para diálogos. Não queria saber o que me diziam as pessoas que, durante anos, foram o meu contato com a realidade lá de fora.

Lembro-me também da retomada. Manhã de sábado, pés descalços. A varanda era outra. Eu tinha em mãos uma xícara de chá fumegante e senti falta de notícias de um velho amigo. Escolhi um meio moderno de correspondência para retomar nosso velho diálogo. Voltei a escrever missivas e a resposta foi ligeira para aquela carta sem selo. E desde então, cá estou eu, a escrever e você, sem dúvida é parte desse movimento.

Grazie por receber-me em tuas mãos.
Au revoir

13 respostas para ‘50 — Deixei de estar disponível…

  1. Lunna Guedes

    Ah, eu me lembro da primeira resposta que recebi. Era apenas uma folha de papel. Estava numa colônia de férias. Estava aborrecida com o lugar e o coordenador do lugar me entregou o envelope. Foi o mais apertado dos abraços que já vesti. rs

    bacio

  2. Suzana Martins

    Ah Lu, as suas missivas chegam até mim feito abraço de inverno. Passeio pelas tuas paisagens e fico a suspirar momentos. Levanto, olho a paisagem lá fora e percebo uma das minhas dogs brincando com a borboleta que pousa na lavanda.

    Suspiro…

    o dia está azul. o céu desfila sem qualquer nuvem no céu e cá estou a mergulhar em tuas letras. Sinto-me feliz. Essa é a sensação que povoa por aqui. Ler as suas linhas é encontrar aconchego no verbo.

    Não lembro de quando comecei a escrever missivas. Só sei que amo esse momento. Gosto da espera ansiosa da resposta. É um ritual de sentimentos a povoar as lacunas do dia.

    E as tuas cartas de páginas amarelas? Recebê-las é um bálsamo. É um mergulho na leveza do ser. É a flor a desabrochar na primavera e a folha a enfeitar o outono.

    Sempre fica em mim milhares de sorrisos quando as tuas letras chegam por aqui.

    Até a próxima! ❤

Pronto para o diálogo? Eu estou (sempre)