* confesso não percebi o momento de nossas mãos algemadas

* Adriana Aneli (o sol da tarde)

Eu não entendi a notícia quando a recebi pela manhã. Gal Costa morreu… eu li a frase e foi como ter nuvens nos olhos. Não fez sentido. Demorei alguns minutos ali, a olhar as palavras todas juntas, uma frase única. Fui checar a informação, como sempre faço e me deparei com a notícia em destaque nos dois principais sites de notícias do país.

Gal Costa morreu! E eu comecei a cantarolar a primeira música que ouvi, como se meu corpo se recusasse a beber a estranha notícia: “chuva de prata que cai sem parar / quase me mata de tanto esperar“. Recordei a infância. Eu e C, dançando juntas na cozinha de casa ao som de Gal. Era uma das músicas que embalava as nossas manhãs de sábado.

A primeira vez que a ouvi… foi na rádio da cidade. Um velho Gradiente reproduzia a letra, que era destaque na programação. Adorei o ritmo e a voz. Não sabia quem era Gal. Era muito nova para conhecer mulheres subversivas… Aprendi a letra, como uma estrangeira. Decorei as palavras, sem que fizessem sentido. Me deixava orientar pelo ritmo…

Mais tarde, ganhei de presente de sete anos… um passeio por uma casa de discos — como eu adorava entrar naquelas lojas. Era um lugar pequeno, com posters de bandas dos anos sessenta-setenta coladas na parede. Havia uma sonata onde se podia ouvir o LP desejado. O dono era um velho rockeiro apaixonado por música e que conhecia todos os bons ritmos do mundo. De capa em capa, fui escolhendo os meus presentes: Gal. Caetano. Tom. Elis. Chico…

Ao chegar em casa, realizei o melhor dos rituais: limpei o vinil com uma flanela, virando o disco no ar de um lado para o outro para espiar as linhas quase invisíveis do LP e me certificar de que não havia riscos que pudessem atrapalhar a execução das faixas. Coloquei para girar no velho Gradiente e pouco depois do chiado inicial, a música começou. E eu não sou capaz e dizer o que senti ao ouvir aquela voz poderosa emergir: você precisa saber o que eu sei. E o que eu não sei…

Anos mais tarde, vivendo em solo brasileiro, precisei ir ao Rio a trabalho. E lá estava eu, no aeroporto, com horário marcado para voltar para São Paulo. Tinha ganhado um cd duplo da Gal Costa… capa azul e aquela mulher-figura sorridente na capa-palco — o melhor lugar para o seu corpo-alma.

Como estava na cidade do Tom parecia perfeito ouvir Tom na voz magnifica de Gal… e ao levantar os olhos — enquanto repetia os versos de Wave –, eis que surge a dama a voz, com seus passos largos. E eu fiquei admirando sua figura, enquanto caminhava pelo saguão. Uma mulher-mortal, comum…

Não me aproximei. Não sou o tipo de fã que interpela-aproxima-incomoda. Não peço autógrafo ou fotos. Sou a que observa e admira de longe… e se sente privilegiada por dividir o mesmo espaço. Gosto da dúvida que se acomoda em meu corpo: é a Gal? E como não havia ninguém por perto para esclarecer… convivi com uma espécie de miragem provocada por alguma emoção-minha.

Ilusão que me acompanhou o dia todo… enquanto ouvia Gal, consciente de que não é possível me despedir. Eu ainda canto Elis, Tom, Nara e agora Gal.

Nesse novembro [entre outras coisas] vamos de #blogvember…
Aventuram-se em linhas diárias: Mariana GouveiaObdulio Nuñes Ortega,
Suzana Martins e Roseli Pedroso

9 respostas para ‘* confesso não percebi o momento de nossas mãos algemadas

  1. obduliono

    Gostei de Gal desde a primeira vez que ouvi “Baby”. Eu, ainda muito novo, tinha a Elis como a minha cantora preferida, entre outras tantas, incluindo Maysa, Alaíde Costa e Elizete Cardoso, a divina. Quando Elis morreu, Gal me salvou ao continuar lançando canções que sempre me comoviam. Com o tempo, percebi que esses seres mágicos não morrem enquanto vivermos. Que lindo que ela nos une também dessa maneira. Uma lágrima insistiu em cair…

  2. Roseli Pedroso

    Lunna, assisti a vários shows dela. Solo e ao lado dos Doces Bárbaros, quando se reuniram para uma série de shows, no Parque Ibirapuera. Além disso, tive o privilégio de conhecer de perto, a mulher Maria da Graça, que atravessava a rua e entrava no colégio, levando pela mão, seu filho pequeno. Uma mulher simples, educada, sempre com seu sorriso estampado no rosto. Ahhhh, voltei a ficar com olhos marejados…

  3. Suzana Martins

    Ontem foi um dia extremamente difícil. Quando eu vi a notícia no canal de tv eu também não assimiliei. Precisei olhar e ler novamente para entender ou tentar compreender. Não acreditei. Fui ao twitter. Li e não acreditei. No exato momento da notícia, eu ouvia Vaca Profana… que triste é um mundo sem Gal!

    Eu ouço Gal desde a infância. Minha mãe sempre gostou do trio Gal Costa, Simone e Maria Bethânia. E enquanto lia as tuas palavras a atravessar as memórias, lembrei de sentar na sala com a minha mãe e cantarolar as canções enquanto o vinil chiava…

    Ah… um suspiro nostálgico daqui!! ❤

Pronto para o diálogo? Eu estou (sempre)