* Enrolo em laços e fitas a linha do tempo presente

* Nirlei Maria Oliveira (palavr(Ar)

Estava na varanda a observar os movimentos nesse pós-feriado — tudo ainda tão lento, sem ritmo… Os raios solares lambiam a fachada dos prédios inanimados da Alameda e resvalaram — caprichosamente — em duas criaturas com os passos encaixados num caminhar lento e despreocupado do outro lado da rua.

Seguiam em linha reta, vigiando o lugar dos pés, percebendo as irregularidades do caminho, medindo distâncias a cada passo e eu fui com eles. Diziam-se coisas inaudíveis para mim… Mas o meu imaginário preencheu lacunas, com coisas adormecidas em algum canto, atando o ontem ao hoje.

Vi quando foram engolidas pelas copas das árvores. Fechei os olhos e a emoção foi se agigantando por dentro… escapando pelos poros. Que estranho se dar conta do tempo e seus movimentos de dias-semanas-meses-anos. Duas décadas inteiras…

Mas há um som em minha memória que será ausência para todo o sempre… Dos meus pés trilhando os caminhos ao lado de uma das pessoas mais importantes da minha vida. Gostava imenso quando era apenas eu e ele… em caminhadas soltas-avulsas, sem mapas-direções. Apenas a vontade de ir… Interrompíamos o passo ao dar pelo lugar-desconhecido dos olhos e perguntávamos ao mesmo tempo: onde você está me levando?  E a resposta fazia o riso escapar dos nossos lábios: um seguia o outro…

Tinha planejado os dias seguintes, assim que ele avisou que viria ao meu encontro. Nós não éramos de tramar futuros, preferíamos o momento, regido por Kairos: vamos ao Marrocos… Foi a nossa última decisão repentina. Pegamos a mochila, os documentos, contamos o dinheiro e lá fomos os dois. Queríamos ver o mais belo pôr-do-sol do planeta. E nem sei de onde tiramos isso. Mas foi lindo estar lá, sentada no café e ver aquela paleta de cores ao cair da última hora solar.

Tracei um mapa com os meus lugares preferidos na cidade, para mostrar a ele o lugar que havia me recebido com uma Tempestade — o único a fazer isso, em todos esses anos de idas e vindas.

O primeiro seria o Viaduto do Chá — e suas histórias antigas, antes das interferências humanas. Mostraria a elegância do Teatro Municipal, que naqueles dias estava envolto por tapumes e entregue a uma interminável restauração. Mas, como Teatro antigo, tinha histórias de fantasmas para contar… E do outro lado a Prefeitura, num prédio erguido outro de nós.

Faria uma pausa no meio do Viaduto para falar do abismo que foi domado-moldado para unir os dois lados da antiga vila de passagem. De onde eu assisti o avolumar-se das nuvens e ouvi gritar o primeiro trovão — forte-furioso –, no meio da tarde-primeira. Senti um poderoso solavanco no corpo, como uma descarga dada por socorristas para fazer o cuore voltar a pulsar. Foi incrível e eu soube que a escritora tinha encontrado a sua ilha.

Segundo ponto no mapa… a simpática Avenida São Luiz — um traço cinza com árvores em grandes maços verdes a abraçar a geografia do lugar. E torceria para que o braço do elétrico se soltasse, atrapalhando o trânsito dos veículos, desorientando a pressa tão comum nessa cidade.

E, entre esquinas, exibiria o meu sagrado-templo: a Biblioteca Mário de Andrade, com suas mesas perfeitas para a escrita-leitura. Eu tinha planejado fazer as apresentações dos meus primeiros “amigos”: Bibliotecários, que me apresentaram Gilka, Adalgiza e tantas outras poetas locais…

Seguiríamos Consolação acima e eu apontaria primeiro para a Igreja, uma construção que se destaca em meio a anatomia de prédios envelhecidos e enrugados da Praça Roosevelt. Alguns passos para cima, do outro lado, uma das maiores necrópoles da América: com túmulos antigos e a arte tumular, com anjos e demônios convivendo pacificamente com os mortos.

Cortando por dentro do bairro… chegaríamos a Avenida Paulista, um traço feito a partir de uma promessa: essa via irá te conduzir ao teu futuro. Mostraria a ele o que havia restado dos casarões erguidos pelos Senhores do Café… e os prédios espelhados, cada vez mais modernosos.

Faríamos um lanche no Sesc e depois, tomaríamos um gelatto no Alaska — um ícone dos paulistanos que fechou as portas, em 2019. E para encerrar o passeio… o levaria até a Augusta para um chá feito com ervas frescas e servido em bule, no Café Fellini, que não sei se ainda existe. As últimas notícias davam que o pequeno prédio estava com os dias contados.

Mas ele não veio… a vida-realidade tinha outros planos. Mas, cada vez que percorro esse mapa imaginário, o levo comigo na memória e o meu imaginário faz o resto.

Nesse novembro [entre outras coisas] vamos de #blogvember…
Aventuram-se em linhas diárias: Mariana GouveiaObdulio Nuñes Ortega,
Suzana Martins e Roseli Pedroso

7 respostas para ‘* Enrolo em laços e fitas a linha do tempo presente

  1. Rozana Gastaldi Cominal

    Faça sol, faça chuva, a mochila está sempre pronta para acompanhar você seja qual for a direção no mapa físico ou mental. ❤️ 🚶‍♀️

  2. Nirlei Maria Oliveira

    Que passeio delicioso! Adorei este caminhar através dos seus olhos e palavras pelas ruas de São Paulo! Mapa de afetos, memórias! Muito obrigada pelo lindo presente! Amo seus textos, por demais! Será que já te disse isso?

Pronto para o diálogo? Eu estou (sempre)