* Entalhadas nas nervuras do corpo ser — semente — flor

* Nirlei Maria Oliveira, As estações

Ao observar a paisagem urbana que chega a minha varanda no meio da manhã de hoje, lembrei da primeira vez que sentei para escrever uma história…

Eu abri um caderno em sala de aula… e corri o grafite pelas linhas — sem compromisso algum com regras literárias. Escrevi por escrever somente — uma história do meu tamanho, enquanto tive linhas e páginas. Não pensei em leitores-livros-livrarias-prateleiras-publicações. Apenas na história que eu queria narrar-contar. E foi o que eu fiz, aos poucos — migrando para um mundo próprio-particular, alheio a realidade e o monótono estudo dos “ismos”…

Escrevi a partir das minhas fronteiras — a escola serviu como cenário… e os personagens eram as pessoas com quem convivia naqueles dias: vizinhos-alunos-transeuntes e alguns professores.

Foi uma experiência curiosa! Minha única leitura durante dias-semanas… quase um mês inteiro. Eu vivi para tudo aquilo. Escrevia durante as aulas de geografia e lia — linha por linha — sentada na parte mais alta da arquibancada do ginásio ou num dos bancos de cimento da Praça dos tabuleiros — entre a escola e a minha casa. Eu gostava imenso de ouvir o som das folhas do caderno em movimento… e da minha própria voz a pontuar a trama.

Eu nunca desisti da escrita… Apenas fui em outra direção — oposta a literatura. Mas as narrativas não cessaram. Continuei a escrever em silêncio, do lado de dentro, nas paredes do meu corpo — pequenas notas. E algumas histórias, eu escrevia no ar. Eu migrava — de maneira inconsciente — para uma espécie de universo paralelo com cenário-personagens e histórias. Roteiros inteiros de Austen a Woolf. Cenas de filmes… de Allen a Hughes.

Eu me lembro que passava das oito horas noturnas quando eu passei por uma livraria. Entrei e ao circular por entre prateleiras de poesias-romances-crônicas inglesa-francesa, me interessei por um caderno pautado e com ele em mãos, ocupei a mesa de um café e durante dias eu fiquei lá, a observar as páginas em branco, sem escrever palavras. Vez ou outra o meu silêncio era atingido por restos de diálogos. Eu observava as marcações, percebia ensaios e me antecipava as falas, como se estivesse em um palco, conferindo os detalhes de um roteiro… escrito naquela fração de minuto.

A escrita aconteceu em minha vida-matéria-corpo… e pronto. Quando olho para trás, estou sempre a escrever — a riscar o papel nos mais diversos e inusitados lugares. A ser meu próprio personagem — o mais indócil de todos. Narro a minha trajetória na terceira pessoa. Empresto o meu corpo para o outro, que não eu. É sempre um segundo antes-depois. Uma pausa e a cortina se abre… observo o cenário e a personagem que sou, misturadas a tantas outras que não eu emerge e assume o controle dessa nau. Sou despejada da minha matéria e assisto do lado de fora a esse jogo de cena. 

Anos depois daquela primeira narrativa infantil… rascunhei várias outras e reconheci depois de um pesado gole de café, que a bússola aponta sempre para o Norte, a única direção possível para alguém como eu.

Neste novembro [entre outras coisas] vamos de #blogvember…
Aventuram-se em linhas diárias: Mariana GouveiaObdulio Nuñes Ortega,
Suzana Martins Roseli Pedroso

12 respostas para ‘* Entalhadas nas nervuras do corpo ser — semente — flor

  1. Mia

    Lunna, boa noite,

    Você passou lá no meu canto e eu vim aqui para conhecê-la. Fiquei curiosa depois de ler. Geralmente os comentários são breves e o seu foi longo e muito gostoso. Ao te ler, entendi. Você é uma escritora e só comenta quando alguma coisa te toca. Fiquei muito muito muito feliz mesmo.
    Fiz o exercício que você se propôs e a nós também e entre parágrafos, fui navegando entre sua realidade a minha. Não há semelhanças, mas há um encontro de desejos e vontades de prosseguir num rasto de linhas, letras e narrações. Eu não consegui me lembrar como você, mas sinto que está em algum lugar de mim.

    bj
    Mia

  2. Bia Perez

    Escrever é uma terapia. Muitas vezes uma autorreflexão… Deixar livre e solta a imaginação. Adorei sua história com as letras e o pensamento. Obrigada por repartir conosco Lunna.

    Bjs

  3. Bruna Paiva

    Eu não tenho dúvidas de que a escrita me fez alguém diferente. Passei a prestar atenção em muitas coisas, sabe? É um exercício gostoso-natural que me dá uma paz enorme. Escrevo o que sinto e fico mais leve. Publico desde os 14 anos e sei como cada um dos meus textos surgiram. Cresci no meio dos livros e dos textos, foi o que definiu quem eu sou.

    bj

  4. Jull Palmer

    Eu também quis fazer o exercício e fui longe. O meu primeiro texto foi uma redação escolar e como foi difícil. Tinha uns oito ou nove anos. Era algo sobre as férias. Nunca me esqueci daquele texto, lido em voz alta diante da turma inteira. Eu queria fazer bonito ao escrever e só pensava em minha mãe e depois ao ler, queria mostrar para as pessoinhas o quão incrível tinha sido meus dias na casa do meu avó paterno.

    Gostei da brincadeira e sai escrevendo outras histórias.
    Muito bom me lembrar disso menina Lunna

    bjinhos

  5. Nirlei Maria Oliveira

    Que delícia de texto, memórias da escrita-corpo-mundo impregnadas em detalhes preciosos. Fiquei a pensar e inventariar meus primeiros rabiscos e histórias! Amei demais!

  6. Rozana Gastaldi Cominal

    Só digo que estou amando estar com vocês, entre missivas, prosa poética, ficção curta, poemas que correm em direções a perder de vista.

Pronto para o diálogo? Eu estou (sempre)