Não posso dizer o dia, a hora ou o lugar…

Ainda é domingo (?) passa das oito… quando os ponteiros anunciam as seis dentro de mim, com o seu badalar antigo-rouco — movo-me para outros cenários. Esqueço-me pelos cantos do corpo, da pele. Respiro fundo e retorno de lugares-outros-tantos em pequenos goles-gotas — tive uma amiga que colocava gotas escuras num copo de vidro transparente. Aquilo me entretinha, soavam batidas do cuore-carrilhão. Ela agitava o líquido dentro do copo, antes do gole… quando acontecia uma espécie de silêncio — uma quase-morte.

Eu gosto dessas pausas pontuadas pelo quase… não significam grande coisa. Não servem para nada. Mas soam como metades… da noite, do dia, da hora ou da laranja. Eu prefiro os gomos, levados à boca, um por um. O que me faz voltar a Colheita… lendo os poemas, como quem caminha por paisagens antigas, recolhendo coisas, repetindo gestos, alinhando palavras — em voz alta.

cuido dos cabelos
e negocio com a morte:
mais de duas covas
abertas ao dia
para cada fio
que ainda
brilha

Você falou em notícias do cotidiano — tenho evitado os jornais, as revistas que andam inventando novas formas de fim de mundo-tudo. Prefiro as páginas dos livros, onde me esqueço em delírios criativos. Voltei a ler Edgar Allan Poe e seus contos envelhecidos. Gosto de coisas que desbotam-desgastam e ganham uma pequena camada de mofo imaginário. Escrevi um conto — uma releitura de meus dias no colégio, com figuras circenses-mambembes-pantomimas. Reescrevi algumas muitas-vezes. Li em voz alta e ainda não estou satisfeita…

Saltei para os diários de Al Berto, com suas muitas linhas envenenadas — escritas-sem-riso. Ele ouvia Verdi para calar as coisas do mundo. Eu nada ouvi durante o dia. Quis ouvir os sons da mobília, das paredes e restos de conversas pelo corredor… era tudo que precisava. Vez ou outra um verso… de Hilda ou as cartas de Ana C e as suas linhas.

o sol suspenso
desaparece
atrás das nuvens
e do vento
a mulher à espera
desaparece
atrás das roupas
e do rosto
postiço

Leio-te nos intervalos de tudo isso — uma conversa. Sobre o fim… o tempo. Ouço o som do cuore dentro do peito e misturo tudo. Todas as coisas das quais sou feita-refeita, inventada-reinventada. Quantas páginas tem esse meu-livro-de-vida? Eu não escrevi a maioria das tramas ali. Participei delas… em alguns momentos fui coadjuvante.

Outro dia, revelaram os meus dias (ou foram as horas?). Levei um susto. Não sou boa com somas. E, ao olhar para a tela… e observar os números escancarados a partir do meu ponto zero no mundo, estranhei. Alguém falou em matemática e na importância dela para o Universo e eu me aborreci…

Você escreveu um romance e eu estou as voltas com um… escrito e reescrito algumas tantas vezes. A personagem principal escapou da história e deixou outra no seu lugar, obrigando-me a rever todas as notas — outros números com os quais não gostaria de lidar.

Reparou que a segunda-feira começou por aqui?

2 respostas para ‘Não posso dizer o dia, a hora ou o lugar…

  1. Lyani

    Perfeito! Simplesmente perfeito esse diálogo. E concordo em número, gênero e grau, ops. E quando você começa a gostar tanto do personagem que ele faz parte de você? Agora, admito, fiquei intrigada com a fuga da personagem.

    bjos

Pronto para o diálogo? Eu estou (sempre)