13 — A flor escura da realidade

Daqui de dentro, sem prazo para emergir…

Caríssima M.,

…sua missiva chegou até mim como uma forte rajada de vento, daquelas que tiram tudo do lugar e causa algum tumulto na mesa que ocupo essa semana.

Não saí de casa — não vi pessoas e me espalhei pelos cantos desse lugar ao qual não pertenço. Sou hóspede temporária desse cenário, como fui de tantos outros, desde que cheguei à São Paulo. Sou hóspede em meu próprio corpo e o único lugar que reconheço como lar é a Noite — e os dias de chuva! Os relâmpagos e trovões… são parte de minha anatomia.

A noite é, com certeza, o meu lugar… é aquela roupa gostosa que o corpo veste e nela se esquece — uma espécie de segunda pele. É o meu inverno. Minha xícara de chá de raízes-folhas-e-cascas. O livro que sempre volta as mãos para uma última leitura.

Passei os últimos em mim, naquela porção mais funda, onde a realidade tenta, mas não consegue penetrar. Não é um refúgio onde me escondo — é apenas um lugar inventado durante minha estadia no templo da infância, por mim apelidado de: noite imensa…

Eu nunca gostei dos dias — que são causa de fadiga, indisposição. Respiro fundo — como quem morre — um sem-fim de vezes e o verbo aborrecer… se conjuga em minha pele feito tatuagem. O sol a tingir tudo com suas luzes me aborrecem… e eu me lembro de achar engraçado descobrir durante as aulas no colégio, que só enxergamos por causa da luz, que é codificada por células.

E eu passei a piscar mais depois que o professor comparou a pupila com o diafragma de uma máquina fotográfica e a ouvir um clique imaginário. Anotei em um dos meus cadernos-vermelhos: quantos cliques os olhos registram por segundo de vida? E quando é que folheamos esse nosso álbum?

Eu não sei se em algum momento parei de pensar nisso… porque continuo a piscar e a fechar os olhos para nada registrar-ouvir-sentir e ficar do lado de dentro… imersa em qualquer coisa de paz.

A realidade minha cara, sempre foi um ingrediente para os meus experimentos…
Eu flutuo por cima das coisas, atravesso cenários. Mas não sei se eu me misturo as coisas-pessoas-lugares. Passo por eles e levo comigo alguma coisa e, tento acreditar, que deixo qualquer coisa minha… numa espécie de troca-justa. — como diz a canção de Marisa Monte — ‘isso me acalma, me acolhe a alma‘.

Os abismos são assim… apenas queda  — mas há quem prefira a realidade que curiosamente oferece a sensação de pés no chão. Eu prefiro apreciar minha porção de Alice… cair e cair e cair!

Au revoir

Publicado por Lunna Guedes

Sou sagitariana... degustadora de café. Figura canina e uma típica observadora de pássaros, paisagens, pessoas e lugares. Paciência é algo que me falta desde a infância. Mas sobra sarcasmos para todas as coisas da vida que fazem mais barulhos que cigarras nos troncos das árvores. Aprecio o silêncio e falas cheias, escreve-se em prosa por apreciar a escrita em linha reta. Tenho fases como a lua... sendo a minguante a minha preferida!

6 comentários em “13 — A flor escura da realidade

  1. Ah, que título delicioso e eu fiquei aqui imaginá-la dento dessa noite imensa e com os olhos fechados.
    Maravilhoso título e narrativa.

    Lu, não vai te lançamento seu nesse 21?
    bisous

  2. Outro dia percebi que, apesar de ler sempre seus posts, não comento…
    E foi uma surpresa essa constatação porque eu falo comigo mesma a cada texto seu. Pergunto e respondo, leio e releio alguns trechos. E fica uma prosa tão animada de mim para mim mesma que esqueço de te contar como me deleito com o que leio por aqui.

    Obrigada!

  3. Ler teus escritos é mais do que meramente juntar palavras em um coordenado que forma frases completas. É sentir cada linha como se estivesse ao teu lado enquanto escreve.
    Sou também uma pessoa que encontra maior abrigo e conforto na noite, mas jamais havia pensado compara-la a uma roupa gostosa e esta tua descrição me encantou.

    Beijos

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