Outra vez estou em mim…

Pois já conheci a todos, a todos conheci
– Sei dos crepúsculos, das manhãs, das tardes,
Medi minha vida em colherinhas de café;
Percebo as vozes que fenecem com uma agonia de outono
Sob a música de um quarto longínquo.
Como então me atreveria?

T.S.Eliot

 Minha cara M.,

Bom dia! Decidi mudar o dia de escrever missivas, embora goste da segunda-feira para outras conversas! Um aborrecimento me fez trocar a mobília do lugar. Vez ou outra faço isso…

É outono por aqui… depois das quatro. Antes é qualquer coisa aborrecida, que não se identifica por mais que o olhar procure por detalhes. E você deve imaginar que os meus olhos investigam tudo à minha volta.

Quando os fecho… ouço o som carrilhão dentro do meu corpo-casa-memória — que faz estremecer toda a minha anatomia irregular. Eu gosto da sensação de pele arrepiada. Uma coisa, no entanto, me intriga: não sei te dizer quem se misturou a quem: as batidas do cuore as do carrilhão ou o contrário.

É uma coisa sem importância, admito. Apenas um pensamento-curioso que se dispersa no ar, a caminho da varanda… onde observo a tarde perdendo as cores, tropeçando em sombras — escorrendo… se desfazendo numa lentidão de horas inteiras.

Observo — nesses dias de abril — o efeito da poluição que deixou a lua alaranjada. Está linda-imensa num céu meio esfumaçado, meio alaranjado. Respiro fundo e vem o cheiro de poeira no ar — provocando coriza-coceira (coisa de gente alérgica).

Dentro, os aromas são outros. Tanta coisa junta. As digitais coçam e a memória vai tateando as paredes do corpo e vem a vontade de fugir para a cozinha. Colocar a chaleira no fogo. Escolher a xícara e o saquinho de chá. Os rituais-todos vão se antecipando em mim. Os ingredientes: alho, azeite, lascas de gengibre, tomates em cubos, alho poró em tiras. As panelas. A chama azulada. Os sons são outros… igualmente prazerosos.

Penso nos poemas de Eliot, Borges, Emily, Amélia e nas histórias de Mia Couto que narra a sua África… tão diferente da minha. Penso no som das cortinas sendo fechadas para ajudar a escurecer mais cedo. Eu sou qualquer coisa noturna, você sabe…

Vez ou outra eu escancaro tudo: portas-janelas-cortinas… para deixar o vento entrar e fazer a festa nos meus papéis. Adoro a maneira como finge organizar as minhas coisas. Se alguma coisa estiver perdida… encontrarei!

Penso no bolo de fubá feito pelo mio babo… cortado em pequenos quadradinhos, guardados em latas, na parte de cima do armário — coisa que ele aprendeu com a nonna. Num filme antigo, visto incontáveis vezes. Envelopes artesanais e a quem escrever…

Tantas coisas e algo inesperado: penso no depois! Quando passarei a limpo essas linhas. Até lá, esse diálogo poderá se dissolver e se juntar a pilha de “cartas não enviadas” — algo que há tempos se repete. Tenho uma dúzia de envelopes lacrados com um único destino: o meu velho baú artesanal de madeira, feito pelo Marco.

Acho poético, admito! Como outras tantas-muitas-outras coisas na minha vida-realidade. Ainda mais sendo segunda-feira, esse dia lunar que não existe sem poesia.  Aliás, não sei se contei — foram os versos que me apresentaram ao Outono! Antes, essa estação inexistia. Não era nem mesmo uma palavra… Foi através de um poema lido por outra pessoa, que a palavra-estação ganhou contornos em mim: outono – de outra vez estou em mim…

Serei eternamente grata a Fernando Pessoa por me fazer perceber que uma Estação é coisa da alma… como as fases da lua. Cada uma tem a sua cor, o seu sabor e a sua magia. Nada disso pode ser medido por mapas-calendários… ainda mais em uma cidade em que se parece tanto comigo “vive se precipitando as coisas, os lugares, as pessoas”. 

Neste ano, dei pelo outono em meados de fevereiro e disse em voz alta, ali na varanda: a estação está mudando… Dessa vez, ninguém me disse que ainda era cedo demais. Eu sorri e fui preparar a minha xícara de chá. Escolhi os versos de Wislawa — lidos em pequenos goles e pronto: fez-se outono pouco depois das quatro…

E, eu sigo entendendo o outono como sendo: “outra vez estou em mim”… apesar do calor provocado pelas tais ondas de calor.

Grata pela companhia dentro dessas horas escuras…
Au revoir  

10 respostas para ‘Outra vez estou em mim…

  1. Nilson Barcelli

    O Outono é propício a momentos mais intimistas como os que descreveste.
    Porque precisamos de mais aconchego…
    Adorei o teu texto, que li de um fôlego.
    Querida amiga Lunna, tem uma boa semana.
    Beijos.

  2. madalena barranco

    Querida Lu, antigamiga, que foi dourada ao melhor sorriso do outono pela Mãe Natureza… Me senti como se fosse a própria borboleta com as asinhas meio encolhidas, tentando me aquecer no delicioso friozinho das noites profundas, imaginando xícaras de chá mornas em meio aos fofíssimos Toby e Lino de pelúcia e edredons floridos de rosa. Suas palavras foram me envolvendo e tomando formas e aromas que envolvem nossa querida São Paulo e nos remetem ao interior de lares aconchegantes, que por sua vez me levam ao que há de melhor na palavra aconchego: ao abrigo de meu coração. Obrigada, por este momento lindo e mágico de leitura. Beijos, com carinho.

  3. Maria Cláudia Martins

    Desejo que o outono passe bem devagarinho, para que possas ter todo o tempo, para escrever missivas tão gostosas como esta….Eu adoro o outono, principalmente por causa das folhinhas secas que deitam nas calçadas a minha espera para pisá-las…hehehe….Bom outono para você caríssima e que ele te traga muitas inspirações para que possamos todos, nos deleitar junto contigo…Bjinhos no coração…:)

  4. Ingrid

    gosto do Outono…pelas cores,pelo ar..
    que passe lentamente… que inspire tantas e muitas palavras e missivas…
    beijos sempre..

  5. Edilma Maria

    O outono ficava só no imaginário, a partir das coisas lidas: é como ainda hoje é para mim. É preciso ter uma sensação mais clara que possa se dita com sentimento. Antes era tudo comum, depois que descobriu o outono o sentimento das coisas passaram a ser antecipadas. É como se tivesse um olhar além do senso comum. Daí antecipa tudo: o abraço no minuto seguinte, as palavras ao final da página. O instantes fluem descompassados. Lembrei-me de uma pequena frase de Clarice Lispector, e ela está em tudo: “Agora é um instante. Já é outro agora.” Tudo muda num instante-já.

    Beijos! ;]

  6. Nivea

    Uau!! Que delícia de estação sentimento.
    Sempre te soube gostosa, delicada e cuidadosa com as palavras, mas me apaixonei completamente por algumas das suas formas.
    Apaixonante o texto, como são as suas palavras pensamentos que nos fazem viajar.

  7. luma rosa

    Oi, Lunna!!
    Gosto do cenário que descortinou da sua janela, mas não passa pela minha cabeça pessoas chegando em casa para dançar tango 😀 O meu vinho combina mais com ouvir, quem sabe um velho blues? Outono merece os finais de tarde alaranjados e o sol debruçando devagarinho no horizonte, do mesmo modo, janelas se fechando mais cedo e introspecção.
    Bom fim de semana!!
    Beijus,

  8. Joakim Antonio

    Como dizia o poeta, “Não basta sentir a chegada dos dias lindos.
    É necessário proclamar: Os dias ficaram lindos.”.

    Assim como você, tão bem, detalhadamente proclamou.

    Bacio e una bella vita!

Pronto para o diálogo? Eu estou (sempre)