* A carta foi escrita com os espinhos que ninguém plantou.

* Mariana Gouveia, As Estações

Em 1991 eu completei dez anos — minha primeira década de vida. Foi um ano maluco… de transições. Eu precisei escrever uma carta para o meu futuro, que naquele ano estava personificado na figura de um homem sisudo, farto de carnes e com um linguajar engessado.

Enquanto eu o ouvia, rosnava por dentro. Ele não foi simpático ou agradável. Me olhou com desconfiança e seus gestos eram típicos de alguém que tinha mais o que fazer que dar atenção a uma menina com o seu metro e meio de altura. 

Recebi meia dúzia de conselhos e ele se sentiu à vontade para colocar uma das mãos em meu ombro. Escapei do gesto… avisando-o que não tinha dado autorização para que me tocasse e sugeri a leitura de: O segundo sexo de Simone de Beauvoir.

Ele trocou olhares com C., e se desculpou com ela — mas não comigo. Foi embora como chegou e nós duas fomos caminhar pelos arredores. Ela conhecia o lugar e seu passo parecia se encaixar no próprio rastro…

A vida adulta dela teve início ali; quando se deu conta que estava por conta própria. Era uma lembrança boa que a fez sorrir e falar a respeito. Fomos nos sentar debaixo da sombra de uma árvore, de onde ouvimos o som do sino, que ressoou as horas do dia por toda a parte. Ela falou do que aprendeu durante o tempo em que o Campus de Coimbra foi o seu mundo-realidade…

Foi uma das poucas vezes em que vislumbrei qualquer coisa de futuro e gostei do que imaginei. Iniciei a escrita da minha carta ao futuro ali mesmo, por dentro, nas paredes do meu próprio corpo — consciente de que poderia acontecer de nunca pousar numa folha de papel…

Quando chegamos em casa, ao final daquele dia, numa das casas da vizinhança, tocava More than Words e nós duas cantarolamos alguns versos da canção que fazia sucesso na época e eu gostava dos acordes — nem tanto da letra.

Não mais ouvi falar deles e a música se perdeu nos dias seguintes, em que um nome emergiu poderoso, no ar: Saddam Hussein… e o mundo dos homens inventou mais uma guerra e por pouco não compromete meu futuro.

Nesse novembro [entre outras coisas] vamos de #blogvember…
Aventuram-se em linhas diárias: Mariana GouveiaObdulio Nuñes Ortega,
Suzana Martins e Roseli Pedroso

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